Introduzo com uma anedota:
“Tendo Estílpon escapado do incêndio em sua cidade, em que perdera mulher, filhos e bens, Demétrio Poliorcertes, ao vê-lo em meio a tamanha destruição de sua pátria, e com o rosto nada assustado, perguntou se se não tinha sofrido prejuízo; ele responde que não e que graças a Deus não perdera nada de seu”.
A pequena história é atribuída ao filósofo Antístenes, fundador da filosofia cínica, e está presente no ensaio de Montaigne “Sobre a solidão”.
Salvo o aspecto sinistro, o que o trecho nos diz? Tudo que temos nesse mundo somos nós mesmos. E nada mais.
Viemos e sairemos do mundo sós. No entanto, a solidão é sempre carregada de sentimentos negativos, de medo e insegurança. Fazemos de tudo para não vivê-la, mantemos relacionamentos tóxicos, perdemos nosso tempo com conversas bobas, nos mantemos constantemente distraídos para que ela passe despercerbida se vier nos incomodar.
No ensaio, Montaigne apresenta uma concepção muito particular do que é solidão. Para o filósofo, e criador do gênero ensaio, a solidão não é sinônimo de isolamento. Para além de dispensar a companhia do outro, solidão é viver mais ao gosto de si mesmo. O exílio seria parte necessária para que o sujeito seja capaz de viver por si mesmo no mundo. Em síntese, para o autor é preciso se insubordinar aos preceitos da vida coletiva para alcançar a devoção à própria individualidade, e assim experimentar a solidão.
A solidão aqui não é um simples estar, não é inércia, é movimento. Em suas palavras “é preciso sequestrar a si mesmo e reaver a si mesmo”. Essa busca é afinal um gesto de coragem, é caminhar ao encontro da nossa essência. Pois como diz numa frase simples e grandiosa: “a maior coisa do mundo é saber de si mesmo”.
O texto é acessível a todos, em tom de conversa e ao mesmo tempo extremamente profundo filosoficamente. Montaigne mais parece um homem do século XXI do que do longínquo século XVI. Talvez por isso, não raro o autor é inserido nas estantes de auto-ajuda. O que é bas-tante contraditório, uma vez que os textos de auto-ajuda em geral se propõem a aconselhar a vida do leitor, ou seja, introjetar algo de fora em sua própria vida, o oposto do pensamento de Montaigne.
Montaigne enaltece a solidão, defende que devemos buscá-la, ir atrás dela, e não vivê-la apenas quando ela nos acomete involuntariamente. Para o autor, a vida nos requisita tanto que sobra pouco de nós para nós mesmos. Fico imaginando o que ele diria da vida que levamos hoje.
O mundo nos pede que sejamos personagens o tempo todo, no trabalho, na família, nas redes sociais. Estamos o tempo todo fazendo escolhas ou autorizando que outro faça por nós, tudo isso com o único objetivo de fazer o mundo continuar a ser como é. De certa forma, o que diz Montaigne é que não nos deixemos invadir por esses personagens.
O filósofo faz o apelo de muitos terapeutas por aí: vivemos bastante para o outro, que vivamos para nós. Arrumemos um canto só nosso, todo livre em que não haja espaço para qualquer conexão com o outro. À procura disso, milhares de pessoas vão em busca de retiros espirituais. Para alguns esse encontro consigo mesmo se dá na meditação. Eu acredito que a literatura é uma espécie de estado meditativo também.
Ler e escrever são ações solitárias. Mas que não têm sentido se não chegarem a alguém. Como diz Schopenhauer “ler é pensar com a cabeça de outra pessoa”. É preciso ser autêntico para se ser generoso. Só o que é próprio comunica e pode então ser do outro. Uma solidão coabitada vira encontro.
Apesar de ouvirmos sempre que não devemos nos importar com o que os outros pensam, a verdade é que somos mamíferos gregários, somos sociáveis, e queremos que os outros gostem de nós. Isso nos traz felicidade. Talvez a preocupação prévia de agradar o outro é que desvirtue o caminho da nossa própria autenticidade. Um equilíbrio difícil.
Montaigne nos ensina que é preciso estar só para reconhecer o outro que há dentro de nós mesmos. Porque no fim das contas, solidão é ser sua própria multidão.
Maiara Líbano (Rio de Janeiro, Brasil). É escritora e realizadora cinematográfica. Atualmente é diretora e roteirista na TV Brasil. É membro do coletivo Clube da Leitura do Rio de Janeiro desde 2013. Publicou diversos contos em coletâneas literárias, sendo a última delas “Nosotros – 20 contos latino-americanos”, ao lado de Marcelo Mirisola, Katia Gerlach, Myriam Campello, entre outros. No momento termina de escrever seu primeiro livro solo.