Em meio ao cipoal babélico e às contradições, paradoxos e obviedades que marca o cenário requentado da produção literária brasileira, torna-se cada vez mais evidente (e motivo de comemoração) a presença das pequenas editoras.
Numa esfera cada dia mais fetichizada, em que o poder quase mafioso dos grandes grupos editoriais (que já não têm editores, da estirpe de um Ênio Silveira ou um Jose Olímpio, mas executivos com olhos nas planilhas) é avassalador, criminosamente indulgente com lixo e com o incensamento de mediocridades elevadas ao status de genialidade criativa, o trabalho desses outros editores, na contramão desse sistema acachapante, está a demonstrar que vem surgindo uma nova realidade nesse campo até agora tão dominado. A crise das grandes editoras, o encerramento de atividades de redes de livrarias e o ressurgimento de pequenas livrarias, indicam um novo momento na edição, produção e comercialização de livros no Brasil, ate há pouco atreladas a um rígido monopólio e à faina dos atravessadores.
A força poética e ficcional que vem das pequenas editoras, sobretudo quando os mais importantes prêmios literários do País vêm reconhecendo qualidade e vigor em autores publicados fora do eixo tradicional do mercado editorial é um sintoma de que nem tudo está perdido e que começa a ser mudados os parâmetros que vigoram, ditatorialmente, há tempos.
Os editores dessas pequenas casas – entre as quais destacamos a Patuá, Reformatório, Dobra, Penalux, Quelônio, Lote 42, Laranja Original e Letra Selvagem (SP), Oito e Meio e Confraria do Vento (RJ), Scriptum, Moinhos e Relicário (BH), Jovens Escribas (RN), Arribacã (PB), Cousa (ES) etc –, apenas para citar alguns exemplos de quixotismo e resistência em várias estados brasileiros, vêm trabalhando com afinco e dignidade, sem dever favor algum, para publicar autores de talento e valor estético, cujas obras, inclusive, vêm desbancando pesos pesados da bibliografia nacional, como é o caso, nos últimos anos, de Susana Montoro, Paula Fábrio, Jacques Fux, Guilherme Gontijo Flores, Everardo Norões, Ana Luísa Escorel, Maílson Furtado, Débora Dornellas etc vencedores de importantes certames pelo valor incontestável de suas obras e não por força de relações, blindagem ou compadrio.
Essas pequenas editoras têm exercido papel fundamental ao dar vez e voz a alguns nomes, tantos deles rejeitados pelo imperdoável silêncio e a indiferença do oligopólio editorial. Este, cada vez mais suscetível às relações sociais e políticas de seus editados do que verdadeiramente movidos pelo interesse na descoberta de valores e novos talentos ou resgate de outros autores que, por uma ou outra razão caíram no anonimato.
Basta ver que os “queridinhos” do mercado, da mídia e da crítica rendida e vendida” vêm adquirindo, de forma avassaladora o altar da literatura. Exemplo cabal desse nivelamento por baixo é o deboche e a fraude poética de escribas de algibeira, que ganham páginas inteiras na grande imprensa e são convidados para as Flips, flatos e quermesses que pululam de norte a sul – verdadeiras vitrines mercantilistas e não palco para a literatura – enquanto autores verdadeiramente com tutano criativo são esmagados pela máquina apodrecida do mundo cultural e literário, onde prevalecem os escritores de proveta eleitos pelos consensos paroquianos, em que o estrelismo, o narcisismo, a “vida literária” (feiras, patotas, igrejinhas, grupelhos, máfias, gangues, cozinhas, vitrines para todos os gostos, onde são sempre os mesmos a partilhar dos espaços da mídia) valem mais que a literatura.
Exemplo deprimente e desalentador desse cenário é o ostracismo a que foi relegado o escritor brasileiro Julio César Monteiro Martins, falecido na Itália no final de 2014, onde vivia há mais de vinte anos como professor de literatura brasileira na Universidade de Pisa.
As novas gerações, tributárias da literatura de Philip Roth, Paul Auster, Thomas Pynchon, Roberto Bolaño, Coetze, Amós Oz, Enrique Vila-Matas, Murakami, David Grossman etc e toda a bibliografia internacional imposta goela abaixo pelo acachapante sistema editorial, ignoram solene e despudoradamente um autor como esse, que nos anos 70 e 80 pontificou no cenário editorial brasileiro, além de ter sido proprietário da editora carioca Anima, que traduziu alguns clássicos.
A negligência se generaliza não apenas no meio editorial e na monopolizada rede de livrarias (cujo peculiar espírito comercial apenas vê literatura como negócio, mercado e lucro), mas também entre escritores e críticos os quais não alimentam o mínimo interesse em (re)conhecer o que produziu não apenas um Julio César Monteiro Martins, mas esses que enchem os pulmões em entrevistas para declinarem suas influências (e afluências) e seus créditos a gurus literários estrangeiros, pretensamente alimentando uma dicção que seja absorvida pelas editoras internacionais.
Também desconhecem que no País há tantos escritores completamente alijados não só do mercado, mas das bibliotecas, entre os quais Cornélio Penna, Lúcio Cardoso, Rosário Fusco, Samuel Rawet, Dantas Motta, Ricardo Guilherme Dicke, Geraldo Maciel, José Agrippino de Paula, Renato Pompeu, Ewelson Soares Pinto, Ricardo Ramos, Eugênia Sereno, Orides Fontela, Maura Lopes Cançado, Osman Lins, Dora Ferreira da Silva, Jaime Rodrigues, Antonio Fraga, Lupe Cotrim, Gilka Machado, Joaquim Cardozo, Dyonélio Machado, Eugênia Sereno, Moreira Campos etc (a lista da proscrição é grande, entre vivos & mortos) completamente relegados ao anonimato, por culpa e obra de uma cultura literária que avaliza esquemas e panelinhas, alberga o pornô-chic, respalda a modernidade vazia e despótica (porque sem humanismo), aceita a badalação como literatura e rejeitam o que é linguagem e densidade, para incensar a mediocridade, lançar holofotes na estupidez, legitimar modismos. São falsos criadores que vampirizam a vida literária, dissimulados em suas redomas mercenárias.
Esse descrédito vem a reboque também de uma banalização geral que se verifica no País nas últimas décadas em todos os setores, em que há uma crescente bestialização das consciências e o rebaixamento da intelligentsia. Um dos mais cabais sintomas dessa pauperização cultural é a massificação provocada pelas duplas de música sertanojo, a proliferação das igrejas evangélicas e seu imorao comércio da fé, com seus pastores eletrônicos (verdadeiros estelionatários espirituais no assalto dos dízimos em nome de uma pretensa teologia teoria da prosperidade de um Deus barganhador e como caixeiros viajantes do pseudo-Paraíso).
Na mesma esteira, o recrudescimento de um pensamento conservador, na política, nos costumes, e na moral, que nos remete e à histérica flatulência do lacerdismo e seus golpistas de plantão que tanto instabilizaram o País nas ondas do passado udenista e hoje revive incólume e sem constrangimento, incorporada nos defensores nazistóides da ditadura, o que desaguou na nefasta eleição de Jair Bolsonaro, na esteira de um retrocesso institucional, político e moral, fruto da sórdida lavagem cerebral que hipnotizou boa parte da consciência nacional e que trouxe nessa corrente de lama e ódio o fim de uma era de conquistas e avanços civilizatórios, que estão sendo sumariamente revogados, nosso ingresso na barbárie.
Para concluir e em endosso ao já dito, relembro lúcido artigo publicado na edição nº 816 (16/9/2014) do “Observatório da Imprensa”, em que o jornalista Alexandre Coslei enfrenta a questão do camelódromo da literatura, apontando as mazelas desse setor em que escritor e editor se rendem e se vendem cada vez mais ao mercado, num cenário em que não se importam com a qualidade, mas com as cifras e os holofotes. Conclui ele: “Na rendição do escritor às frivolidades do Mercado Editorial é que se dá o encontro entre Fausto e Mefistófeles, é quando a literatura perde a alma.”
A literatura morreu!
Viva a Literatura!
Viva a verdadeira criação!
Vivas aos lúcidos e corajosos criadores, que resistem às pancadas e injustiças!
Ronaldo Cagiano é escritor mineiro de Cataguases, viveu em Brasília e São Paulo e está radicado em Portugal. Autor, dentre outros, de Eles não moram mais aqui, Prêmio Jabuti de Contos (2016).