A estilista mineiro-carioca Zuzu Angel, famosa por sua moda verdadeiramente brasileira e fora das métricas europeias, encarnou também a figura da militante política em plena ditadura militar no Brasil (1964-1985). À procura do corpo de seu filho Stuart Angel, desaparecido político à época, Zuzu usa a sua moda para desafiar o Estado e as normas de gênero em uma dinâmica que chama atenção pelo clamor ao luto tal qual Antígona na tragédia de Sófocles ao tentar enterrar o corpo de seu irmão. Zuzu ao incorporar a mãe que sofre por seu filho – a mater dolorosa – vendeu seu trabalho internacionalmente como uma das primeiras estilistas a costurar moda e política de forma tão explícita.
A maison de Zuzu inaugurada na década de 1960 em Ipanema era um sucesso entre a elite carioca. Elevou a costura de família da mineira a um expoente da moda brasileira dentro do país e fora dele. A estilista brincava com tecidos brasileiros e com as cores, bordava pedras brasileiras semipreciosas em seus modelos e criava estampas que eram feitas por casas de tecido no Rio de Janeiro, na Bahia e no Ceará. Zuzu vestiu as celebridades de seu tempo como Joan Crawford, Liza Minnelli, Kim Novak e até as primeiras-damas D. Sarah Kubistchek e D. Yolanda Costa e Silva. Talvez sabendo que seu filho estava em perigo como militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8) na luta armada contra a ditatura, Zuzu se aproximou de figuras políticas importantes. Ainda assim, Stuart Angel foi preso em 1971 durante os “anos de chumbo” da ditadura sob a liderança de Médici. Dois anos depois, sua nora, companheira de Stuart, também desaparece e nunca mais é vista [1] [4].

Ainda em 1971, Zuzu Angel lança sua primeira coleção política a International Dateline Colection III: Holiday and Resort in New York com desfile na casa do cônsul brasileiro em Nova Iorque e exposição no Gotham Hotel. Zuzu já se destacava como uma designer brasileira de moda no desenvolvimento de roupas prêt-à-porter. A coleção em destaque se dividiu em duas partes: uma primeira com tecidos leves e frescos e uma segunda com tecidos nobres e estampas políticas. Os desenhos das estampas de Zuzu tinham um ar naïf, lembrando desenhos infantis. Um olhar mais apurado, porém, percebia que os soldados, as crianças, os pássaros em gaiolas, os anjos negros crivados de balas, os tanques, os aviões e os barcos tinham duplo sentido. O anjo – que já era parte da identidade visual da marca de Zuzu – começou a representar seu filho morto. Os tanques, barcos e aviões faziam referência ao Exército, à Marinha e à Aeronáutica que comandavam o país [1] [4].
Além disso, faixas pretas foram adicionadas nos braços das modelos que desfilavam suas roupas simbolizando luto. Zuzu era vista de vestido preto com um cinto de cruzes que representava cada jovem morto pela ditadura. Nos Estados Unidos, a mensagem de protesto foi captada, enquanto no Brasil, as manchetes desviavam do assunto. De mãe de família que torcia o nariz para o engajamento político de seu filho, Zuzu passou a usar seu ofício como suporte de resistência engajando uma costura que era poética e política. O luto público de Zuzu Angel mostrava sua dor de mãe. Tal como Antígona com seu irmão, Zuzu apenas queria o direito ao luto, o direito de enterrar o corpo de seu filho e lhe conceder honras fúnebres. Tal como Antígona, Zuzu desafiava uma política masculina que deveria prosperar com a submissão de suas mulheres, suas irmãs e suas mães de família [1] [4] [5].

O luto de Zuzu também mostrava sua dor de cidadã denunciando a máquina de tortura e desaparecimento – morte – do Estado em um momento em que isso não era muito falado ainda. O luto de Zuzu é um ato político quando expõe um sistema organizado de “fazer morrer” os inimigos públicos da ditadura militar por meio da chancela estatal: os comunistas. A partir de certo momento, Zuzu Angel sabia que seu filho estava morto. Seu corpo, pelo pouco que se ouviu na época, foi jogado no oceano e nunca foi localizado. Zuzu sabia que não poderia recuperar seu filho, mas resistir à ditadura agora não era apenas uma opção, e sim um imperativo moral [4].
Na filosofia de Judith Butler, o luto público confere reconhecimento. A ideia de vida carrega consigo a ideia de morte, uma vez que todo vivo pode morrer. Alguns, contudo, estão mais propensos a morrer do que outros. Na ditadura militar, a militância estudantil colocava a vida dos jovens engajados mais próxima da morte. Esse sistema que assassinava comunistas (e outros), nesse sentido, comunga o mesmo objetivo com os sistemas que escravizaram os negros, dizimaram povos indígenas e, hoje, sufocam favelados, pretos e pobres: matar! O luto público escancara a violência de Estado e aponta para as mortes que devem ser choradas e as mortes que devem ser esquecidas. Nessa distribuição desigual, o luto público chama atenção para a igualdade do humano, reconhecendo a vida em morte daqueles que foram perdidos. Zuzu Angel politiza a morte de seu filho e de tantos outros jovens assassinados reconhecendo suas vidas perdidas sob a alcunha de “baderneiros”, “terroristas” e “subversivos” [2] [3].
O luto em sua moda alegre e despojada contrastava criando uma denúncia quase que panfletária no país e internacionalmente. A sua arte era a sua principal plataforma de protesto com toda certeza. A estilista, contudo, também apelou para a política mais direta e escreveu cartas para Henry Kissinger, então secretário de Estado dos Estados Unidos, para Mark Clark, general americano que lutou na Segunda Grande Guerra, e fez o seu caso chegar ao Senado americano através do senador Edward Kennedy. Talvez ela obtivesse alguma ajuda já que Stuart Angel era também cidadão americano como seu pai. Zuzu se apegou à música de protesto, que assim como sua moda, criticava a ditadura com jogos de duplo sentido para driblar a censura. Chico Buarque era um dos preferidos da modista. A sua semelhança física com seu filho assassinado possibilitou uma espécie de transferência como conta Hildegard Angel, filha de Zuzu [4]. Na música “Angélica” de 1981, Chico Buarque canta:
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar
Zuzu Angel foi assassinada em 1976 no Túnel Dois Irmãos (hoje Túnel Zuzu Angel) na estrada Lagoa-Barra. Morreu em um suspeito acidente de carro que foi provado ter sido uma emboscada, mas que não teve nenhum culpado. Tal como Antígona o destino de Zuzu é a morte. Zuzu “escolhe” a morte ao insistir no luto público e na busca do corpo de seu filho mesmo com todas as ameaças que recebia. Com sua audácia, ela desafiou o Estado brasileiro e sua política assassina. Diferente de Antígona, fruto de um incesto e destinada à tragédia por bagunçar as estruturas de parentesco, Zuzu Angel era apenas uma mãe de família. Sua morte deixa claro que a ditadura militar não matou apenas comunistas, mas também àqueles que diziam proteger contra a ameaça vermelha em nome da ordem e do progresso [4] [5].
Infelizmente, a moda de Zuzu e sua luta política não foram suficientes para criar uma consciência anti-ditadura no país e nem no Rio de Janeiro. No Brasil de hoje, a ditadura e o nome de torturadores são bradados com orgulho. Nós falhamos em curar as feridas do passado e cuidar de suas cicatrizes para que elas não se repitam. Continuamos a sofrer nas mãos dos mesmos algozes fantasiados de gestores, conservadores e messias. E continuaremos a sofrer se não enlutarmos as mortes dos pretensos inimigos de Estado, da população negra e indígena massacrada por uma realidade racista e dos mortos que se acumulam por conta da pandemia do COVID-19.

Até o momento de conclusão desse texto, mais de 150 mil vidas foram perdidas por conta do vírus Sars-CoV-2 no Brasil. Nossos políticos, em especial o presidente Jair Bolsonaro, desdenham dessas vidas que são vítimas de um desgoverno sem precedentes e de um Estado que falha em proteger seus cidadãos. Essas 150 mil vidas se tornam um número inócuo e infeliz de uma tragédia anunciada. Precisamos da coragem de Zuzus para resistir contra essa política do fazer/deixar morrer impregnada no Brasil. Precisamos enlutar as mortes dos que foram perdidos na ditadura militar (e dos que continuam morrendo pela pandemia) para celebrar um nova vida política e cidadã no país. O luto alegórico da modista Zuzu Angel, além de resgatar a cultura brasileira com seus modelos ousados, foi e continua sendo a resistência que precisamos pôr em prática para um futuro mais democrático. Que os anjos de Zuzu zelem por nós!
Ricardo Prata Filho é nascide em Uberaba-MG, mas foi criade em Goiás. Hoje morador da Tijuca no Rio de Janeiro, Ricardo é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Brasília (UnB) e mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Atualmente é doutorande em Relações Internacionais também na PUC-Rio. Seus interesses de pesquisa perpassam migrações e refúgio, gênero e sexualidade e direitos humanos. Suas leituras flutuam entre a filosofia, a antropologia e a literatura brasileira. É tutor do Programa de Educação Tutorial (PET) do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e fascinade por jardinagem, moda e maquiagem. E-mail: ricoprata@gmail.com
Agradecimentos: Meu muito obrigade as incríveis aulas da professora Carla Rodrigues no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ no semestre 2016.2. Meu carinho pelo meu namorado, Everton Cherpinski, que acompanhou a pesquisa e fez leitura dramática de Antígona comigo durante a quarentena.
Referências bibliográficas:
[1] ANDRADE, Priscila. A marca do anjo: a trajetória de Zuzu Angel e o desenvolvimento da identidade visual de sua grife. IARA: Revista de Moda, Cultura e Arte, vol. 2, n. 2, São Paulo, 2009.
[2] BUTLER, Judith. El grito de Antígona. El Roure Editorial, Barcelona, 2001.
[3] ________. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto?. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2015.
[4] ITAÚ CULTURAL. Ocupação Zuzu Angel. YouTube, 2014.
[5] SÓFOCLES. Antígona. eBooksBrasil, 2005.