Sitiados na floresta de Winterberg, a floresta seca e desnutrida, árvores espaçadas sugam o solo sem húmus, o vento é severo, poucas sombras, muitas lacunas apócrifas. Condições climáticas cinzentas. Olhos buscam os olhos da floresta, olhos que espelhassem a alma da humanidade. A floresta morta não abriga ninhos de pássaros ou esconderijos para seres amorosos.

Filme: “Juventude”, dirigido por Paolo Torrentino. Um casal de idosos faz sexo no centro da floresta e grita.

Quando nevar em Sauerland, um mar branco cobrirá o chão cuja superfície aceitará os estrondos das botas de soldados. Um êxodo fantasmagórico de humanos em marcha, de galochas, refugiados dos porões construídos para o armazenamento de batatas e o cultivo de picles.

Jan explica duas regras básica do manual da Bundeswehr: para que um soldado seja considerado morto, a sua cabeça dilacerada deverá estar vinte centímetros afastada do pescoço e um soldado deve nadar quando as águas atingirem um metro de profundeza, independente de sua altura.

Benjamim explica que a Judéia e a Samaria pertencem a Israel e que ele, antes da morte do irmão e de entrar para a política, lutou na guerra e quase morreu.

Ilustração de Kátia Bandeira de Mello (2023)

Quando alguém diz que quase morreu, a gente logo dispara: mas o quão perto você esteve da morte? Vinte centímetros? Um metro?

Dos quartos de hotel de La Paz, é possível estender o braço e tocar no céu com a mão enquanto se ouve o latido dos cães ao darem voltas amarrados ao teleférico. As florestas em altas altitudes oferecem câmaras hipobáricas, cápsulas com visores para a desertificação e as ações de um casal solto na floresta.

Um desabrigado a um palmo da terra dorme nas ruas de várias cidades. Um desabrigado se multiplica como num milagre. Quem os vê pergunta: ainda respira? Passantes usam o aparelho de celular para tentar salvá-los mas não há um fio que os resgate. O corpo se mantém no asfalto sem que um voluntário meça o pulso. No Arizona, o asfalto esquenta a ponto de fritar ovos estelares.

Depois de chocarem os seus ovos, as galinhas servem de alimento para jacarés nos lagos infestados ao redor de um parque de diversões. Os jacarés não distinguem entre carne de galinha ou de criança embora se sintam mais saciados ao deglutirem crianças.

Já os galos chamam-se todos Barcelos e enfeitam estantes, tapeçarias, toalhas de mesa e banho, sendo que alguns vêm com a abilidade de medir a temperatura da floresta de Winterberg ou do Altiplano, ou até mesmo do asfalto do Arizona, variando as matizes do azul pastel ao vermelho explosivo.

Com a velhice sentada na cadeira de rodas, qualquer passageiro rola ladeira abaixo, extraviando-se.


Kátia Bandeira de Mello é escritora, poeta e artista visual, com formação em Direito Internacional Privado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade de Londres e a NYU School of Law. Natural do Rio de Janeiro, é radicada nos Estados Unidos desde 1998. É colunista e editora da Revista Philos e bolsista da New York Foundation for the Arts. Publicou os livros Forrageiras de Jade (2009), Forasteiros (2013), Baleias, bromélias e outras naturezas (Lisboa, 2022) e, pela Confraria do Vento, Jogos (ben)ditos e folias (mal)ditas (2016) e Colisões bestiais (particula)res (2016), Caderno de Artista (2022) e A patafísica do quadrado: um romance na rota das galochas (2022).

Publicado por:Philos

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