Interessada na mistura entre o carnaval e a cena noturna, a drag-queen carioca Organzza vislumbra mundos possíveis através de uma pergunta: e se fosse carnaval o ano inteiro?
Imponente, Organzza caminha pelo centro do Rio em um sábado de manhã. Um dia aparentemente normal, comum à vida de milhões de cariocas que cortam as ruas em busca do seu sustento. Tudo seria corriqueiro se a performer em questão não estivesse banhada em lantejoulas que tilintam ao mínimo movimento, roupas de paetê que gritam ao sol em seu esplendor iridescente, um altíssimo salto alto agulha que perfura o chão a cada catwalk… e ah! claro: camadas de maquiagem que invocam a drag do mais profundo âmago do seu criador, Vinícius Andrade. A performance se repete conjugando outras montações e espaços do cotidiano: enquanto uma faz uma clara alusão à Nossa Senhora, que encontra minutos de descanso sentada sobre a mesa de um bar (talvez entre um pileque e outro?), outra posiciona um bate-bola em frente a um terminal aquaviário, exibindo sua imponência ao mesmo tempo em que doma um carrinho de venda de ambulantes. No universo criado pela artista, tudo é possível enquanto as cinzas não anunciam o fim de sua fantasia.
As fotografias exibidas nesta primeira edição da coluna Arrasto para a Philos faz parte da série “e se fosse carnaval o ano inteiro”, idealizada por Organzza e clicadas por Íra Barillo. Resultado do acompanhamento e pesquisa oferecido por mim, pessoalmente, ao longo do ano de 2023, a série integra um conjunto de obras comissionadas por artistas jovens integrantes da cena drag carioca, apresentados em uma ocupação virtual durante o último trimestre, com apoio do Instituto Inclusartiz e da Plataforma Bica e patrocínio do edital de fomento FOCA 2022.

O caminho de Organzza foi especialmente conduzido buscando integrar o seu interesse no universo do carnaval e a sua atuação na cena ballroom, que, nos últimos anos, tem encontrado na celebração norte-americana que reúne moda, vogue e música um manifesto de vivências LGBTQIAP+ em luta pelo respeito de suas singularidades. Integrante da casa de Cosmos na categoria Prince, a artista divide o seu amor pelos palcos da ball com a afeição pelos barracões da escola de samba, cuja presença em sua vida foi sentida pela primeira vez não pela impressão direta, mas no sonar distante de quando ainda era um bebê no ventre de sua mãe, que desfilava, grávida de sete meses, nas avenidas da Sapucaí em noites de desfile. Não seria errôneo dizer que Vinicius nasceu sob a percussão do samba de avenida.
Organzza, contudo, nasceu um pouco depois. A persona é fruto de seus estudos em indumentária, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, do boom da cena drag ao redor do globo (que caíram nas graças do público mainstream não apenas pelos feitos de Rupaul, mas por uma presença destas, ainda que tímida, nas grades da programação da TV brasileira de 2000 em frente, como não me deixa mentir a fama de Vera Verão, e, subsequentemente, a estelar ascensão de nomes como Pabllo Vittar e Glória Groove), e da grandiloquência comum ao mundo carnavalesco que lhe é tão íntimo. A drag nasce em maio de 2018 e logo abrilhanta os palcos do Teatro Rival com seus números performáticos no concurso The Queen, festa que vêm fomentando nos últimos anos estas artistas mediante a premiação de performers de acordo com suas montações e atos musicais de dublagem. Entre muitos dos arquétipos utilizados durante sua passagem pela competição, o carnaval se fazia presente através de releituras da arlequina, do bobo da côrte, da sambista. Embora, como narra a artista, sofresse ataques pelo caráter extremamente alegórico (caindo no campo da fantasia, termo pejorativo dentro da cena), sua subsequente coroação tornou a lembrar que o universo drag também é, sim, espaço de fabulação.

Convidada a integrar este projeto, a série foto-performática “E se fosse carnaval o ano inteiro?” aloca figuras carnavalescas, tão presentes na vida de Vinícius e Organzza, não no campo da fantasia, mas na dureza do cenário urbano. Aqui, a artista coloca seu corpo transmutado à prova das ruas, evidenciando e questionando a maneira como a reação do outro evidencia os acordos sociais vigentes. Levando para o ambiente público as fantasias e as práticas de montação, produzidas no fim de 2022, mas, agora, amaciadas sob o olhar permissivo do carnaval em curso, Organzza provoca os códigos da cidade e do produtivismo capitalista, fazendo conviver a alegria e a estranheza de vivenciar a folia sem fim no cotidiano da urbe.
Organzza abre o leque e fala sobre a sua relação com o carnaval, suas origens na zona norte do Rio e seu envolvimento com a cultura Ballroom.

Quais são as suas influências na construção da persona Organzza? E quem foram as suas mentoras?
Eu costumo dizer que eu tenho três pilares para construir a Organzza: o primeiro é o carnaval. O carnaval de rua, o carnaval da avenida… essa ideia do se fantasiar né, de construir um corpo político. O segundo é o afro-futurismo, que é um movimento estético, social e político que constrói uma ideia de futuro. Um futuro tecnológico, um futuro com uma realidade diferente do que dizem que seria a realidade das pessoas pretas. E o terceiro, que é minha mãe biológica, não minha mãe drag, porque desde que eu era criança eu sempre via minha mãe fazendo, o que eu entendo como prática de montação: arrumando sempre os cabelos, se maquiando, roupas, salto alto… minha mãe sempre usou salto [alto], sempre teve essa ideia de se arrumar para sair de casa… e eu cresci vendo isso. E desde sempre isso me inspirou. Então, também, quando eu me monto, eu tenho essa referência de que eu estou quase igual a minha mãe quando criança, assim, a projeção do que eu via quando era criança e eu via minha mãe.
E quem foram as suas mentoras? Pode falar um pouco das pessoas que te auxiliaram a adentrar este universo?
Minhas mentoras drags, já, assim, nesse entendimento que eu estou fazendo drag, a primeira foi Yan Chi, que foi quem me ensinou as técnicas de maquiagem, que me disse o que que era cada coisa, pincel… cada produto. Mas a gente tinha um ponto de divergência, porque Yan é uma pessoa que tem a sua ascendência chinesa e eu sou uma pessoa que tem uma pele negra. Então a gente tinha umas questões de maquiagem para entender como fazer uma maquiagem numa pele negra. E aí logo depois veio Ravena Creole, que é uma drag que se tornou minha madrinha, mas que era alguém que eu já acompanhava e que eu tinha como referência, e que me deu mais toques enquanto maquiagem, mas também enquanto performance, como se colocar enquanto drag. Ravena sempre procura fazer performances com músicas brasileiras que tivessem teor político, que falem sobre a sua história… e isso também me moveu muito enquanto drag: estar sempre que possível falando da minha história e performando músicas brasileiras. Então essas são as minhas mentoras drags.
Como o universo do carnaval influencia e alimenta o seu trabalho?
O universo do carnaval influencia e alimenta não só o meu trabalho, mas ele faz isso na minha vida. A minha família sempre teve uma relação muito forte com o carnaval desde antes de eu nascer: eu tenho um tio que era mestre-sala e a minha família sempre desfilou em escolas de samba… a minha mãe desfilou grávida de mim quando ela tinha sete meses, com maior barrigão… então eu já nasci dentro desse universo. O carnaval sempre influencia no meu fazer artístico por essa parte de colocar a mão na massa, assim. Então eu sempre vi a minha mãe, a minha avó, as minhas tias fazerem as nossas fantasias, a minha mãe já fez bate-bola para mim com cortina… então eu sempre vi esse refazer, transformar, pegar uma coisa e fazer aquilo se tornar uma fantasia, no sentido literal e no sentido imaginário da coisa. Então hoje muito do que eu faço esteticamente também vem desse lugar de misturar a ideia de estar fantasiado e também de estar desfilando, de estar politicamente na rua, colocando meu corpo assim como carnaval faz.
Pode nos falar um pouco sobre a série fotográfica que você está desenvolvendo para o nosso projeto?
Eu acho que a série “E fosse carnaval o ano inteiro”, especificamente, vai ser um passo a mais do que eu já venho desenvolvendo enquanto fotografias e performances. Eu já me monto para ir para lugares na rua fazer esse tipo de trabalho, né. De botar figuras em lugares que elas não são naturalmente vistas. Mas dessa vez eu vou focar especificamente nessas figuras carnavalescas. Eu sou morador da zona norte [do Rio] e o metrô durante o carnaval funciona 24 horas, o que é uma coisa que a gente gostaria que fosse o ano inteiro. Mas ali a gente vê cada coisa… das pessoas entrando, literalmente, de calcinha no metrô, e aí entra só com maquiagem, e aí entra com bebida… entra um outro universo dentro do metrô que, quando dá quarta-feira, acaba. E aí, na quinta-feira, você que estava ali, ontem, de calcinha, hoje é completamente hostilizado. Então, o projeto que eu quero fazer para nossa exposição, é levar essas figuras carnavalescas para a rua ao longo do ano. Como é olhar para essas figuras que você, durante quatro dias normaliza, e, durante o ano, você demoniza?

Organzza, sabendo da sua atuação dentro da cena ballroom, cena produzida para e por pessoas LGBTQIAP+, te lanço a seguinte questão: pra você, onde o carnaval e a ballroom se encontram?
Eu acho que o carnaval e a ballroom se encontram no que a gente chama na ballroom de realness, que é a nossa realidade. Eu acho que no carnaval, durante esses quatro dias, a gente vive aquela realidade, e na ballroom a gente caminha nas categorias servindo o que é a nossa realidade. Durante o ano as pessoas que frequentam a ballroom vivem isso também, porque as categorias eram feitas para que as pessoas que eram pretas, periféricas, latinas, pessoas trans e travestis experimentar durante aquelas categorias vivências que elas não tinham no seu dia-a-dia, o que é muito parecido com que a gente vive no carnaval. Então eu acho que esse é um ponto de muita ligação. Porém, uma travesti na ballroom que é Femme Queen, como elas são chamadas, elas são Femme Queens ao longo do ano. Ela não é só uma Femme Queen quando ela tá caminhando numa categoria, então a realidade dela no mundo é essa, ela vive o ano inteiro como ballroom. E eu acho que se a gente pegasse isso da ballroom e jogasse para realidade do carnaval… como é viver o ano inteiro sendo carnaval, sabe? Sendo a potência que somos quando estamos fantasiados para um dia de folia?
Como você acredita que a sua performance em drag se relaciona ou, ainda, subverte as questões de gênero dentro da cultura contemporânea?
Eu acredito que a minha performance em drag subverte as questões de gênero na cultura contemporânea pelo simples fato de que eu não me monto para reforçar um gênero. Porque drag não é uma expressão de gênero, e sim uma expressão artística. E eu costumo dizer que é a junção de todas as minhas expressões artísticas desde quando eu era uma criança viada, que hoje eu estou jogando para o mundo. Mas, aqui no Brasil, antes mesmo da gente usar o termo drag queen, nós temos movimento transformista, em que tínhamos cinco categorias muito específicas de montação, de transformistas, que eram: a fina, a caricata, a dançante, a bate cabelo e o andrógeno. E dentro dessas categorias tinham definições muito específicas para você se enquadrar. Na categoria fina a gente tinha esse estereótipo do que era ser mulher, do que era ser feminino: cabelos muito modelados, peitos, quadris, vestido até o pé, brilhos, joias… esse glamour desse estereótipo, né, do que elas entendiam como ser mulher. E eu acho que hoje em dia nós estamos mais fluidos em relação a nossa expressão artística enquanto o drag, que não está em uma caixinha específica de um tipo de fazer drag. E eu, por exemplo, me monto às vezes de figuras que não são nem humanas, né. Então, só aí, eu já não estou querendo nem ter a obrigação de reforçar nenhum tipo de gênero. Hoje eu estou aqui, experienciando um bobo da corte. Mas eu me monto de cuca, e depois eu me monto de palhaço, aí eu me monto de passista, e, enfim… Assim como o carnaval, eu acho que drag pode me possibilitar esse mundo de fantasias. Mesmo lá no carnaval a gente tendo algumas figuras sendo masculinas ou femininas, nós temos mais liberdade para viver, né, enquanto expressão artística e não enquanto expressão de gênero.
Com a proposta de mapear e difundir a cena drag na arte contemporânea, o projeto “Arrasto”, na Philos, apresenta trabalhos de cinco artistas de grande relevância no segmento cultural LGBTQIAP+ no país. Sob acompanhamento curatorial de Lucas Albuquerque, Akira Hell, Gui Mauad, Iryna Leblon, Organzza e UNAXVX protrabalhos inéditos, resultado de um longo, e que tomou forma pública na exposição homônima, com apoio do Instituto Inclusartiz e da Plataforma Bica. O projeto foi financiado pelo programa de Fomento à Cultura Carioca (FOCA) e pela Prefeitura do Rio de Janeiro.