Uma manhã, assim que colocou o pé no chão, ela pensou sentir algo molhado. Primeiro, pensou ser seu gato, mas como nunca teve gato, pensou ter deixado a janela aberta para uma chuva noturna. Mas a janela estava fechada e trancada. Com um pano, enxugou a poça, e não acordada ainda, foi ao banheiro despertar-se com um pouco de água fria. A água escorreu pelo seu rosto, seus cabelos e molhou seus pés. Enxugou-os no tapete e foi até a cozinha fazer a primeira refeição do dia. Curiosamente, enquanto tomava uma xícara do seu café, lhe pareceu que estava muito aguado, o que era estranho, pois ela sempre fazia seu próprio café da mesma maneira todos os dias. Era difícil manter-se feliz em um dia que começava assim, então foi resignar-se irritada na sala de estar. Surpreendeu-se ao ver, em um canto, uma pequena poça. Mas não houve chuva, e as janelas estavam fechadas e trancadas. Foi até a cozinha, intrigada, buscar algo para a poça. Voltando para a sala, qual não foi sua surpresa ao escorregar em uma poça que se formava em volta da geladeira. Caída, atirou todos os panos que encontrou na poça e resolveu que aquele não era um bom dia para sair da cama. Esquecendo-se da água na sala, foi direto ao quarto. Jogou-se na cama e cobriu-se com o cobertor, sentindo-o incomodamente molhado próximo aos pés. Impressionada com o azar que lhe tomava nesse dia, sentou-se na cama e olhou para o fim do cobertor, onde havia uma mancha redonda molhada, como se gotas houvessem caído ali. Pensou que houvesse uma goteira no teto, mas o teto estava intocado. Vindo de nenhum lugar, algo lhe importunava. Puxou o cobertor para se afastar da possível goteira e tentou dormir de novo, mas não conseguiu porque um frio tomou conta do seu corpo. Estivesse realmente frio ou estivesse impressionada por todos os episódios comágua que lhe apareceram hoje, levantou-se, com o intuito de buscar outro cobertor. Pisou no chão e molhou os pés, mais do que antes, como se houvesse mais água que antes. Talvez esteja vindo do chão, pensou. O pano que havia colocado ao acordar estava encharcado, e havia mais água em volta. É o encanamento, pensou, embora isso não explicasse o cobertor. Tentando evitar a água, cruzou o quarto até o armário, onde pegou outro cobertor. Deu meia volta, e o chão continuava molhado, então pulou a poça e voltou para a cama. Maldito encanamento, pensou enquanto se aninhava no espaço menor que escapava à goteira impossível. Para sua surpresa, onde o cobertor estava havia outro círculo molhado, e então pensou que realmente era uma goteira. Virou para o lado e tentou dormir. Dormiu por 3 minutos ou horas, mas definitivamente fechou os olhos. E talvez tenha despertado por cansaço, mas definitivamente o que lhe motivou foi o frio, desta vez por sentir seu cobertor encharcado, como se houvessem jogado um balde de água sobre ela enquanto dormia. Mas isso não fazia sentido, pois ela mesma estava completamente seca. Tocou seus cabelos, seu rosto, seus braços e tudo estava normal. Era impossível. Então concluiu que ainda dormia. Levantou-se e deu com água nos tornozelos. O simples barulho do encontro da água com seus pés a assustou, e voltou imediatamente à cama, pondo os pés molhados no lençol que já começava a ficar molhado. De onde isso era possível? O único lugar de onde viria tanta água seria do banheiro. Haveria um enorme vazamento lá, então. Correu até o banheiro, espirrando água com seus passos rápidos e, quando entrou, concretizou seus temores, vendo água escorrendo pelas paredes e grandes manchas no teto, da água que se acumulava e caía ora em gotas, ora em fios. Apavorada, correu à cozinha para avisar que um vazamento de proporções destruidoras acontecia no vizinho de cima. Mas nunca pôde ligar, porque ao apanhar o fone, sentiu-o molhado e viu que, quase imperceptivelmente, água saía de onde deveria sair som. Gritou e largou o fone, que caído começou a pingar. Correu para a sala. Ainda havia água até seus tornozelos, mas agora por toda a casa, e ela lançou-se ao sofá tentando não se molhar, mas quão não foi maior seu espanto, embora já devesse esperar isso, ao perceber que o estofamento estava encharcado, assim como o cobertor. Olhava para todos os cantos, talvez buscando uma solução, mas talvez somente evitando olhar para o chão onde a água se acumulava. Sem sucesso, deu com a água que parecia subir e viu, flutuando, uma folha, agora seguida de outra, e depois outra. Um calafrio tomou seu corpo e correu para seu quarto. Soltou mais um grito ao ver em sua estante uma cachoeira, de onde a água acumulada jorrava e levava junto seus livros, precipitando-os na represa que agora já lhe alcançava dois dedos ou mais acima dos tornozelos. Iam se encharcando aos poucos, até que afundavam, e alguns desistiam completamente e soltavam as páginas, irrecuperáveis, ao menor toque com outro livro que caía ou com algum móvel para onde eram atirados pelo estranho fluxo que as águas começavam a assumir. Correu de volta para o sofá, sabendo que não aguentaria ver a perdição dos seus livros caso ficasse ali. Na sala, seus olhos foram atraídos pela parede oposta a ela, de onde água escorria por veios, como bombeada de algum lugar, vindo de algo vivo, acima do teto. Explicava-se porque o sofá estava molhado, e este relance rápido de sentido acalmou-a um pouco. Poderia ter sorrido, mas um estalo a distraiu e virou-se com tempo suficiente de ver a televisão explodir em faíscas e fumaça, provavelmente por estar cheia d’água. Viu que a água vinha também pela parede atrás da estante de televisão, e da outra, e da outra. Estava cercada. Era preciso escoar a água. Correu até a janela mais próxima e tentou destrancá-la, abri-la, mas seu esforço mais doloroso não foi capaz de movê-la um centímetro, pois viu que a água também escorria pela moldura de metal e havia endurecido o trilho, enferrujado as trancas e impedido que ela abrisse. Estava presa. Correu até a cozinha e tentou escancarar a porta e gritar por socorro. Talvez outras pessoas estivessem passando por isso e até mesmo já houvessem pedido socorro. Pensou que abriria a porta e encontraria os bombeiros prontos para levarem-na para fora. Mas a porta não abriu, a maçaneta pingava e não girava, as dobradiças estavam visivelmente enferrujadas, e aproximando-se da madeira, viu-se os veios de água correndo. Olhando para cima viu que a água não descia do teto, mas vinha do vão superior da porta, escorrendo contínua, como se grande quantidade de água se represasse do outro lado. Mais um calafrio lhe correu, e a ideia de abrir a porta não lhe pareceu mais tão boa. Retrocedeu, de costas, temendo que a porta rompesse sobre ela.
Ao tocar a parede, sentindo a água escorrer por entre seus dedos, percebeu que tremia e mordeu os lábios, temerosa de olhar para alguma janela e ver o mundo lá fora tomado de água, como se vivesse em um aquário gigante, e fosse ali o último reduto de oxigênio. Deu graças às cortinas que a impediam de ver lá fora, mas por via das dúvidas, fechou os olhos. Sem perceber ou poder controlar, sentou-se ali mesmo, entre a água, e com as costas na parede e as pernas esticadas, percebeu que a água já lhe cobria as coxas. Deveria gritar por socorro, mas quem iria ouvir se estavam todos submersos a essa hora? Sentiu o rosto molhado, e não soube se era água ou lágrimas. Limpou-se com as costas das mãos, mas o fluxo continuou. Um repentino incômodo lhe tomou o corpo e percebeu que a água já lhe alcançava o peito. Abriu os olhos assustada e levantou-se. Já tinha as roupas tão molhadas que não se importava com o frio, mas o toque da água ainda lhe incomodava. Sentou-se em um banco, ali mesmo. Recolheu as pernas e abraçou os joelhos, tentando não ter contato com a água que subia. Nenhuma expressão passou por seu rosto, e a água continuava subindo. Tremia. E a água subia mais. Não podia precisar a velocidade, e claro, não fazia diferença. Subiu até que o banco se nivelasse perfeitamente com a água, como se formasse um novo piso. Pensou que se andasse sobre as águas, se levantaria e tocaria o teto, e esse pensamento sem propósito a fez rir, por um momento e pronto. A água chegou aos seus tornozelos de novo, e ela pôs-se em pé no banco, ficando mais uma vez com a sensação incômoda dos pés molhados. Pensou no que fazer. Não havia o que fazer. Esticou os braços e tentou tocar o teto. Não conseguiu. Viu a mesa à sua frente e subiu. A altura não aumentou muito, e assim que se acomodou sobre o móvel, a água já havia submergido o banco e logo se nivelaria com a mesa. Sentada com as pernas cruzadas, encarava com curiosidade a parede à sua frente, de onde a água saía das quinas com o teto, e corria por toda a superfície, como uma fina cascata que, vista dali, formava um espetáculo peculiar. Pensou mais uma vez em como isso era possível. E penso se não estaria já a casa do vizinho de cima completamente submersa. Não conhecia seu vizinho, o que agora era uma pena. A água alcançou sua cintura. Com um sorriso simples, que não era realmente um sorriso, levantou-se e pôs-se de pé, agora mais próxima do teto. Olhando para cima, sentia que podia tocá-lo agora, se quisesse. E ficou ali parada, pois não havia mais para onde subir, os armários estavam do outro lado e a água se acumulava e descia deles como fortes quedas d’água. O toque da água, lá em torrente, seria ainda mais incômodo. Permaneceria onde estava, em pé, esperando. Não teve que esperar muito e, mesmo em pé, a água logo chegou às suas canelas, depois aos seus joelhos e às suas coxas de novo. Agora pensava que poderia sair flutuando pela casa, para ver como estavam os outros cômodos. Mas não quis, por medo de ver o teto do banheiro tomado pela grande infiltração ou sua estante sem nenhum livro. Teve medo de ver seus livros todos destruídos, afundados em seu quarto, como tesouros que nunca serão recuperados em um mar do sul insólito. Sorriu, lembrando-se dos seus livros preferidos, e foi surpreendida por ver páginas flutuando no fluxo incrível que não tinha origem nem final. Passaram por ela e dobraram para a área contígua à cozinha, onde já não os via mais. Lembrou-se de novo dos seus livros preferidos e sorriu. A água tocou suas mãos e ela estremeceu. Outras coisas passaram por ela, o controle remoto da TV que há tempo já explodira, um par de meias, pequenas estátuas de vidro que mantinha na estante para embelezar discretamente sua sala de estar, e muitas outras coisas pequenas que não afundaram e flutuavam, como destroços de um navio. O naufrágio do navio de todos os dias, pensou, tonta. Soçobro. Deve ser isso que querem dizer com a sua vida passar na frente dos seus olhos, pensou ela sentindo a água lhe tocando, de maneira estranha, os cotovelos. Estava fria, mas ela não tremia mais. No fundo, sentiu alguma coisa, mas não manifestou com um sorriso ou uma palavra e, ao invés disso, suspirou. A água lhe alcançou os ombros. Se tudo congelasse, não ficaria mais imóvel do que agora. Respirou fundo. Começava a respirar mais longamente e a considerar quanto tempo conseguiria segurar o fôlego, caso necessitasse ficar submersa. Sentiu algo no rosto, frio, talvez agora estivesse chorando, pensou enquanto olhava para o teto, que parecia mais próximo, e realmente estava, pois a água subiu mais e agora lhe fazia flutuar. Não sentia mais a mesa sob seus pés. Em um raro movimento, agitou os pés na água e isso até lhe pareceu divertido. Agora sim, lançou um pequeno sorriso, antigo, de criança, do tipo que não usava há muito. E até mesmo uma risada pode se ouvir, quando tocou o teto com as mãos. Nem sequer precisava esticar os braços, com os cotovelos dobrados alcançava o ponto mais alto da sua casa. Não entendia que alegria havia nisso, mas havia. E logo se foi. Tocou o teto, de onde não parecia vir água, mas já não confiava mais em seus sentidos, seu semblante se fechou e não demonstrou mais emoção nenhuma, a não ser que de pouco em pouco mantinha a respiração presa por alguns segundos. Não havia tempo para pensar no que lhe acontecia, mas era verdade que havia se resignado, desistido, por todos seus esforços, inúteis, o de tentar abrir a porta, de tentar abrir a janela, de tentar secar a poça no seu quarto. E até mesmo o erro no seu café, levou-a a renunciar. A água lhe alcançou o pescoço, e já não era possível subir mais. Ela não sabia que havia decidido, mas algo fora decidido por ela. Respirando fundo, com a boca aberta para expelir a água que, em eventuais ondas lhe cobria o rosto, teve medo que sua testa batesse contra o teto. E assim como o último pensamento que passou pela cabeça de John Locke foi que não entendia, ela não entendia, e segurando o fôlego até o máximo que pôde, se afogou sozinha, junto com todos os outros que se afogaram deixando que as águas entrassem e lhes tomassem tudo.


Victor Cruzeiro (Brasília, 1989). Contista, escritor, ensaísta, crítico e roteirista de cinema.

Publicado por:Philos

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