O senhor vai querer que tire a barba? A pergunta – empurrão contra a parede, lhe tirou do torpor em que estava nas últimas horas. – Barba? O funcionário da funerária permanecia sereno na sua frente, aguardando a resposta. – Barba? – Sim, o senhor vai querer que tire a barba ou deixa como está? Ele está bem barbudo. Jumárcio olhou para os lados em busca de alguém, um familiar, um amigo, mas estava sozinho naquele momento, tendo que resolver todas as questões práticas e burocráticas que envolvem um enterro. Desde que recebeu a notícia, no hospital, dada por uma enfermeira, teve que começar a responder perguntas sobre coisas das quais nunca havia pensado, como se em um instante a vida tivesse lhe atirado em uma realidade paralela, uma vida fora da vida, onde transitam os que precisam enterrar seus mortos. – Vamos até lá para o senhor ver. O funcionário era um homem negro, baixo, largo e agitado, foi guiando-o por um corredor abafado, escuro, cheio de caixões de diversos tipos. No caminho, Jumárcio lembrou vagamente que minutos antes havia escolhido um caixão, mas não conseguia mais distinguir qual. As lembranças das últimas horas apareciam como em um pesadelo. Uma ânsia de vômito vinha e voltava. O corredor dava para uma sala onde seu filho estava deitado. O sol da tarde entrava pela janela e tudo parecia uma realidade esgarçada. “Vinte anos, tão novo” – pensou. O funcionário falava de coisas que para ele, naquele momento, pareciam sem sentido: – A vida tá muito violenta mesmo… Jesus deve estar voltando… Ele torcia para algum time ?
“Por que me deixaram sozinho neste momento? Por que entenderam que eu aguentaria?” – se perguntava em pensamento. Ao ver, novamente, o corpo do filho, surgiu em sua mente uma cena ocorrida naquela manhã, no IML, o mesmo corpo, nu em uma maca de aço, o perito lhe dizendo: – Você sabe que foi erro médico, não sabe?! Reviraram o corpo dele por dentro, o problema dele era no pulmão, mas os órgãos estão todos revirados… Na memória recente, os olhos do perito pareciam muito claros, aparentando uma enigmática ausência de expressão, o que fazia a cena mais ainda parecer como um pesadelo.?
Começou a suar gelado, as pernas perdiam a força e algo dentro dele parecia querer sair em vômito, embora já estivesse por mais de um dia sem comer nada. O funcionário da funerária, ao ver o seu estado, saiu da sala, parecia impaciente, queria resolver logo a questão da preparação do defunto. Jumárcio ficou uns instantes olhando para a face do filho, pensava se ainda havia algo dentro do corpo, algum resquício de alma. Ainda tentou tocar na face do filho, mas não conseguiu, saiu chorando da sala. No caminho, encontrou o funcionário e antes que este perguntasse, disse de forma afobada que poderiam cortar a barba. Ao passar da recepção, alcançou um pequeno quintal, onde vomitou um líquido espesso e vermelho escuro, a boca amargou, e entre um abaixar e levantar de cabeça, ainda olhou para os lados, como se esperasse pela chegada de alguém.
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“Ninguém se importava com o ‘o outro’, com o negro, que ia lá, rua abaixo, triste e desolado, entre as baionetas, à luz quente da manhã: todos, porém, queriam ver o cadáver”, analisar o ferimento, meter o nariz na chaga… Mas, um carro rodou, todo lúgubre, todo fechado, e a onda dos curiosos foi se espalhando, se espalhando, até cair tudo na monotonia habitual, no eterno vaivém.” – Caio fechou o livro e por uns instantes as palavras finais do romance ficaram circulando em torno dele. Bom-Crioulo seguindo pelo ermo da vida, vazio de si e do amor. Lembrou de Jumárcio, meses que não se falavam, tudo havia sido tão corrido, tão intenso. Ainda usava as roupas que o ex-namorado havia deixado no seu apartamento e, quando a saudade doía no peito, preparava, entre lágrimas, as comidas que o seu homem gostava de comer. Se conheceram em um samba. Jumárcio curtia animado com o filho. Caio, entediado, acompanhava algumas amigas, que assim como ele, davam aula de literatura. O olhar que Jumárcio lançou na sua direção foi tão doce e ao mesmo tempo tão intenso, havia tanta urgência, um desespero. Mas logo percebeu que ali nada aconteceria, pois, após lançar o olhar, a senha, Jumárcio se fechou e não mais olhou na direção de Caio. O samba foi esvaziando, madrugada reinando e Caio fazendo suas amigas ficarem até o final do evento, em algum momento aquele homem negro, musculoso e viril faria contato, não se perderiam. Mas a esperança muitas vezes se esgota em si mesma. O samba acabou. Foram para casa sem se falarem, cada um para uma região da cidade, levando na imaginação todo o bom da vida em sonhos que aquele olhar revelou. Por semanas Caio voltou ao mesmo samba na esperança de rever aqueles lindos olhos de menino, lembravam jabuticabas, na esperança de rever seu príncipe do subúrbio.
Um dia, bêbado, sozinho e desacreditado, quando saía do mesmo samba, Caio foi segurado pelo braço. Era Jumárcio, ofegante, doce e desesperado, que o segurou e ficou olhando em silêncio dentro dos olhos do outro, como se buscasse um abrigo. Caio não se assustou, esperava aquele momento por semanas, apenas disse – “Vamos, vai ser bom”. Naquela noite dormiram abraçados, não se beijaram, conversaram por horas sobre música, cinema, infância e comida. Jumárcio falava mais que Caio, parecia querer contar tudo de si, se esvaziar para o outro, que o acolhia com um abraço calmo e silêncios de grande ternura.
Se amaram por meses, como grandes amigos, como grandes amantes, o corpo negro de um, em simbiose, se afinava com o corpo negro do outro, e juntos formavam um único corpo negro, forte, alto, musculoso e impenetrável, assim como o amor que os unia. De quando em quando, Jumárcio surgia angustiado, falava do filho, da rebeldia do jovem, dos sonhos absurdos de consumo, de temer por ele. Falava também que o filho nunca poderia saber, vivam apenas os dois desde que se separara, com quarenta anos já não dava mais para levar surpresas para ninguém, a vida já estava assentada daquela forma, o menino já dava trabalho, não queria pirar a cabeça do filho, estava bom assim.
Com o tempo, os períodos de angústia foram se tornando mais frequentes e o príncipe do subúrbio foi ficando mais ausente, silencioso. Junto com a angústia vieram o ciúme e uma inesperada agressividade. Uma noite, Jumárcio chegou transtornado no apartamento de Caio, camisa aberta, peito estufado, cheiro de bebida, fazendo acusações, cobrando fidelidade, bateu com um cinto no corpo do seu amor, que chorou em um canto da cozinha, por ver seu sonho estilhaçar, cortar o espírito, como a pele em pó de vidro. Ainda assim, naquela noite os dois dormiram juntos, aconchegando seus corpos negros, fugindo da loucura. No dia seguinte, ao acordar, o professor de literatura percebeu que o silêncio havia tomado conta do apartamento, o mesmo silêncio de agora, sem Jumárcio, enquanto Caio, sentado no sofá, com o livro repousado no colo, vibra por querer ter seu amado por perto.
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Terminado o tempo do velório, chegou a hora de levar o caixão para ser lacrado em uma estrutura de cimento. De tanto chorar, Jumárcio atingiu uma calma inusitada, recebeu um abraço cúmplice da sua ex-esposa, dividiam a mesma dor de perder um filho assassinado. Rosana perguntou um tanto confusa porque tiraram a barba do menino, Jumárcio não conseguia falar, responder. Ela disse um obrigado por ter cuidado de tudo, ele não conseguiu retribuir, sentia-se frágil, por dentro do seu corpo só o vazio, os olhos de jabuticaba pareciam acinzentados, também vazios. Segurava o caixão com a mão esquerda, o cortejo com o caixão estava mais lento que o esperado por ele, por vezes parecia que seu corpo tombaria, um sol muito forte tornava o momento mais delirante. Jumárcio fechou os olhos, seguiu andando, e por instantes, era como se tudo aquilo não estivesse acontecendo.
Vagner Amaro é doutorando em Letras (Literatura, cultura e contemporaneidade) pela PUC-Rio, Mestre e graduado em Biblioteconomia pela UNIRIO, Especialista em Gestão Cultura e graduado em Jornalismo pela Universidade Estácio de Sá. Idealizou e fundou em 2015 a Editora Malê, empresa voltada para valorização da literatura de autoria de escritores e escritoras negros e para a ampliação da diversidade na literatura. Coorganizou as obras Lima Barreto por jovens leitores(Autêntica, 2009), Machado de Assis por jovens leitores(Autêntica, 2011); organizou individualmente os livros Olhos de azeviche: dez escritoras negras que estão renovando a literatura brasileira (Malê, 2017) e Do Índico ao Atlântico: contos brasileiros e moçambicanos (Malê, 2019). Em 2018, lançou o livro de contos ELES (Malê), sobre aspectos da construção da identidade masculina.