Como uma boneca de papel, você veste e investe num corpo vazio de significado, oscilante entre seu desejo e a obrigação de estar na moda, satisfazendo o desejo do outro e a expectativa social na sua maneira de apresentar-se socialmente. O papel já não é somente um elemento lúdico de experimentação das vestes nas brincadeiras de bonequinhas recortadas, mas um papel social onde todos esperam que sigam suas normas e onde o diferente e exótico só é aplaudido nos grandes desfiles de estilistas ou no corpo de um sujeito-fama (que será logo imitado). Onde e como se situa então esse sujeito dividido entre seu desejo e a cobrança social?
Há uma tendência a culpabilizar o sujeito pela sua aparência, quer no sentido de formas, quer na maneira como ele se veste. O que foge da regra – pela obesidade, pelo “fora da moda”, pelo exagerado – é visto como desleixado, rejeitado numa seleção de candidatos a empregos e fora do padrão social. No entanto, qualquer mulher que seja um pouco famosa e vista um biquíni é logo elogiada pelo “corpão” e pela “grande forma”: não se fala do sujeito no seu diferencial de talento, de produção cultural. E, com isso, é criado um mal-estar na civilização onde, como uma regra implícita, mas não confessa, abraça aqueles que não representam “o estranho” para a sociedade, mas aplaudem o exótico famoso.
Paralelamente ao culto do corpo perfeito, surgem intervenções cirúrgicas e recursos que seduzem o sujeito, oferecendo uma saída para, por exemplo, seu efeito sanfona ser remediado: seria um fort-da da atualidade? Oferece-se iguarias, prazeres orais, roupas sedutoras, mas ao mesmo tempo exige-se a forma perfeita. E nessa contradição que envolve o desejo e a pulsão, o sujeito se sente isolado em sua luta constante na busca da felicidade e da necessidade de ser o prazer do prazer do outro, o desejo do desejo do outro.
Nesse sentido, a pessoa torna-se um objeto de manipulação, tal qual uma boneca de papel, numa metáfora dupla, onde o papel é também social.
As representações sociais do corpo na cultura contemporânea e suas implicações nos processos de subjetivação partem do pressuposto que o corpo é sempre uma construção social, espaço identitário do sujeito.
Partindo das reflexões de Lacan a respeito da estética e particularmente do conceito do belo, e analisando o ponto de vista de Joel Birman e Jurandir Freire Costa sobre esse tema de como se situa o sujeito na contemporaneidade, e passando pelo uso perverso da imagem corporal, faremos um paralelo entre alguns casos clínicos de Cathérine Joubert e Sarah Stern e de minha experiência clínica, não sem omitir sobre o livro “Amor Líquido” de Zygmunt Bauman.
A função do belo
Quando Lacan fala que “a informação atrai e captura massas impotentes, nas quais ela é vertida como um licor que atordoa no momento em que deslizam para o matadouro”, podemos associar esse dito ao discurso do capitalista que, numa sedução democrática oferece o produto investido num sonho de sucesso, poder e gozo. E como o sujeito do desejo está sempre à procura do preenchimento da falta que lhe é constitutiva e estruturante, prega, como diz Balman, que você não deve renunciar a nada, pois não há a ideia de tolerar uma falta na nossa atual sociedade. Acenando para o poder acessível e o belo possível, proliferam ofertas de consumo e reconstrução do corpo através dos ideais estéticos contemporâneos, embora uma padronização estética sempre houvesse. A compulsão para adquirir o objeto do desejo e fazer parte do culto ao dernier-cris da moda, da tecnologia, etc., faz com que, aqueles que não suportam estar fora da corrente consumista, fantasiem a satisfação completa ao adquirir esses supostos objetos do desejo que tamponariam a falta. Numa carta à Rilke, Freud disse que o belo é belo porque dura pouco. Essa verdade reproduz a angustia da contemporalidade, pois ela fala da ameaça do envelhecimento, da exclusão do grupo, da defasagem e do fim de estímulos que engodam o sentimento de prazer e mesmo o gozo. As pessoas querem um ininterrupto jorrar de gozo: mesmo os prazeres efêmeros, como programas e filmes de TV, são estendidos em séries para iludir a angústia da falta. Está em pauta a transitoriedade. O belo passa a ser uma exigência social, assim como a juventude e a boa forma. A ideia que é passada, como diz Lacan, é que “o possível é o que pode responder à demanda do homem ‘e’ o temível desconhecido (…) é o (…) inconsciente, isto é, a memória do que ele esquece”. Os ícones da beleza, do corpo perfeito, da juventude eterna prometida pelas intervenções plásticas e redutoras além dos implantes, dos cremes milagrosos, dos perfumes, das academias, dos postiches, mega-hairs, botox, apontam para uma possibilidade ilusória e adiam uma reflexão do sujeito, em relação àquilo que ele é, seu real, transformando o “estranho” (leia-se flacidez, envelhecimento, ruga, etc.) em algo repudiado como não se lhe pertencesse: um verdadeiro desconhecido. E, paralelamente a isso, surge uma espécie de ciúme, como diz Lacan, daquele que (ainda) não precisa desses artifícios do corpo, e vê “o registro do gozo como sendo o que não é acessível senão ao outro (…) um ciúme que nasce num sujeito em sua relação a um outro, uma vez que esse outro é tido por participar de uma certa forma de gozo (…) percebida pelo sujeito como o que ele mesmo não pode apreender (..) ciumar no outro, indo até o ódio, até a necessidade de destruir o que ele não é capaz de apreender de maneira alguma por nenhuma via”. Vemos aí o lado perverso do desequilíbrio entre o corpo e o social.
Um interessante enfoque que Lacan dá ao belo diz respeito de o belo ter por efeito desarmar o desejo. É como se ele prescindisse do desejo do outro e se satisfizesse com a própria contemplação narcísica. O belo conjuga-se com o desejo, mas ao mesmo tempo sabe que provoca esse desejo. E é baseando-se nessa norma, que muitas pessoas perseguem esse ideal para se sentirem amadas e desejadas, tornando-se “bonecas de papel” do desejo do outro.
Um certo mal-estar
Joel Birman afirma que, a partir dos anos 70 e 80, surgiram novas formas de mal-estar, mas foi nos anos 90 que essas novas formas ganharam força: no lugar dos conflitos relativos à moral freando os impulsos, passou a ficar mais evidente o mal-estar nos registros do corpo, da ação e do sentimento e numa indagação ética ligada às subjetividades do corpo. Para Birman, o mal-estar contemporâneo se inscreve em três registros psíquicos: o do corpo, o da ação e o do sentimento, e são esses que aparecem nas queixas ou no sofrimento do sujeito que procura a psicanálise. Para não nos estendermos demais neste presente texto, vamos nos deter apenas ao que se refere ao registro do corpo, que é o registro mais eminente no qual se enuncia o mal-estar. A queixa relativa ao corpo não se refere apenas ao conceito estético, mas também ao lugar representativo dos significantes recalcados e que se apresentam através dos sintomas. Falando isso, nos reportamos ao corpo como porta-voz de um recalque cujo conteúdo – sempre sexual e incestuoso, segundo Freud – não pode ser simbolizado. Assim, diz Birman, em relação ao corpo, nos sentimos sempre faltosos, pois, para o cidadão moderno, o corpo é seu único bem, é a senha que permite a entrada no círculo social e profissional, e por que não no amor? Os sintomas psicossomáticos – e não apenas os sintomas histéricos – se apresentam como porta-voz desse descontentamento do corpo e do espírito, expressando-se no corpo através de doenças que são metáforas daquilo que não pode ser dito, do interdito e do mal-dito.
A respeito disso, cito um caso clínico de uma mulher de cinquenta anos que, contrariamente a seus hábitos, foi ao trabalho do marido, de surpresa, para almoçarem juntos. Lá chegando, flagrou-o com a secretária – que inclusive era uma amiga dela – aos beijos. Sentindo-se mal, afastou-se correndo e foi para casa, chorou muito e dormiu. Ao acordar, estava cega. Ao procurar o oftalmologista e fazer os devidos exames, este disse que não havia nenhuma lesão, nem nada que justificasse a cegueira. Encaminhada para a análise, o quadro foi revertendo à medida que ela fazia associações livres a partir do trauma que sofrera e, claro, com todo o seu passado, seus sentimentos, suas fantasias e expectativas. Ficou claro que ela queria “não ver” o ocorrido, como não quisera ver a decadência de seu casamento. Poderíamos dizer que foi uma histeria de conversão? Sim, mas enquadrar um sujeito num diagnóstico é uma decisão que pode estreitar a amplitude ou abrangência de situações vividas que estão muito além daquela ligada ao trauma.
Um ponto interessante, abordado por Jurandir Freire Costa, é a questão da intencionalidade física e a intencionalidade mental: quando o autor fala que a imagem corporal é formada pela série de imagens narrativas de si e possuidora de atributos, privacidade e intencionalidade, ele ressalta que a imagem que temos do corpo é intencional por “implicar obrigatoriamente a referência a um outro que lhe é exterior e que compele ou solicita o sujeito a se representar de uma ou outra maneira”; e nos remete a um outro caso clínico intitulado “Maria Linder ou o tempo redescoberto”: trata-se do relato de uma paciente que havia sido a mulher mais bela de Bordeaux. Linda, exótica e sedutora, ela era mimada pelo marido que a vestia e investia em seu narcisismo nos melhores costureiros. Um dia, Maria engravidou e sua beleza perdeu o ar felino, razão de seu sucesso social. Com o aumento das responsabilidades, Maria deixou de ser a boneca de exposição e tornou-se uma mulher caseira que engordava cada vez mais, mas se recusava a desfazer-se de suas roupas da juventude. Suas belas e sedutoras vestes não lhe serviam mais e cada vez mais ela se recolhia no refúgio do lar. Um dia, resolveu visitar uma das elegantes lojas onde outrora entrava com o marido e comprava as mais belas coleções. Ao olhar-se no espelho da loja, ela deparou-se com uma senhora de cinquenta e quatro anos, muito diferente da jovem de trinta e até de quarenta anos, que todos admiravam. Percebeu que os anos haviam passado e que a exuberante mulher, que fora outrora, estava morta. Na sua análise, ela se questionou se bastaria conservar roupas impregnadas de lembranças para fazer reviver a mulher que ela fora. Maria nega-se a perder sua beleza, refém no armário, metáfora dos dias gloriosos das roupas penduradas nos cabides. “Se os anos marcam a pele e deterioram os corpos, o inconsciente não reconhece o tempo (…). Fixada na imagem de si, herdada de seus anos de juventude, Maria não consegue superar a distância entre sua imagem no espelho e aquela que seus admiradores lhe devolviam”. Ao perceber isso, Maria começa a fazer a desconstrução dessa fantasia que a fixava no passado distante: abriu seu armário, queimou as roupas, como as de um corpo ausente de vida que é cremado. Ela reconhecia a irreversibilidade do tempo, mas ao mesmo tempo estava confrontando a sua angústia, ligada à perda do seu poder de sedução, ao corpo que fora jovem, mas que agora tinha outras formas. O objeto amado fora perdido. Mas, longe de se entregar a uma melancolia derivada de uma perda, Maria experimentou uma sensação de liberdade e prazer, e realizou o luto do corpo de sua juventude. E voltou às lojas, só que desta vez adequou as roupas a seu corpo atual e não mais a uma imagem mítica. E, como disse Jurandir Freire Costa, “O sujeito que não pode representar o corpo próprio como uma imagem corporal que é causa de mudança na conduta do outro, desorganiza o núcleo formador de sua identidade”.
O corpo é representativo do sujeito social indissolúvel de sua história, de suas memórias, de suas vivências, seus sofrimentos. Aceitar as perdas, adequar-se às novas exigências da vida, da família e da sociedade pode ser uma difícil jornada, mas certamente é o caminho da felicidade.
Lucia Maria Chataignier de Arruda (Rio de Janeiro, 1945). Psicanalista, escritora e roteirista. Mestre em Psicanálise e Cinema e Doutora em Psicanálise e Literatura (dentro da área geral de Psicanálise e sociedade).