Em uma cena de Morangos Silvestres (uma das cenas mais conhecidas de Bergman), o professor idoso Isak Borg deita-se parcialmente apoiado entre grama e morangos silvestres em um bosque. Como se estivesse em um sonho, ele vê seu primeiro amor, Sara, sentada em frente a ele, segurando um espelho de mão diante do seu rosto. Ele não quer olhar, mas ela insiste.
O espelho é um veículo doloroso de auto-conhecimento: o vidro impiedosamente reflete os aspectos do Eu que a pessoa refletida deseja ignorar. Há muitas cenas semelhantes em Bergman, não somente em seus filmes. Por exemplo, no artigo “Ingmar’s Self-Portrait” (escrito no mesmo ano em que Morangos Silvestres foi premiado), Bergman descreve uma situação em que ele mesmo se viu em uma experiência desconfortável similar àquela de Isak Borg: o espelho mostra parte de nós que relutamos em reconhecer. Conforme a crítica de Bergman, Marianne Höök, afirmou tão precisamente: “O espelho é uma abertura na parede da realidade.”
“Olhe para si no espelho. Você é linda. Talvez ainda mais que no nosso tempo. Mas você mudou”. O Doutor, em Gritos e Sussurros (1973).
Maaret Koskinen, Professora de Cinema na Universidade de Estocolmo, em sua tese Spel och Speglingar (Jogos e espelhos/Plays and Mirrors, Universidade de Estocolmo, 1993), demonstrou como o motivo do espelho é recorrente em Bergman. Outros notaram tal fato antes dela, mas somente Koskinen olhou para (e para dentro de) todos os espelhos que Bergman segura perante seus personagens e audiências.
O motivo começa, conforme observa Koskinen, tão logo quanto o primeiro filme de Bergman. Em Crise, vemos Jenny, na meia-idade, observando impenitente sua imagem no espelho com as palavras: “Você não pode ver por fora, mas debaixo desta face… ó, meu Deus!”. Os espelhos de Bergman já adquiriram qualidades de raio x: eles veem mais do que vemos – o que está por trás da máscara facial.
Há cenas semelhantes em quase todos os filmes de Bergman. Em Sede de Paixões, os espelhos adquirem seu papel mais importante em seu trabalho até então, mas é em Juventude que encontramos as primeiras cenas realmente famosas do espelho de Bergman. Há muitos espelhos no filme que, de acordo com o crítico Leif Zern, em seu livro Se Bergman [1], performam uma função dupla: eles permitem que Marie, a personagem principal, se veja, e deste modo permitem também que a audiência a veja a partir de dentro.
Os espelhos replicam os sentimentos de Marie de um vazio, e de sua batalha para descobrir a causa desse vazio, mas eles também colocam a audiência em uma situação onde eles podem ver pelos seus olhos e pela experiência de seu caráter. Bergman, o diretor, é um link entre o ator e a audiência.
Na mais conhecida cena do espelho em Juventude, a bailarina Marie está sentada tirando sua maquiagem. Apesar de seu cansaço, ela se escrutina cuidadosamente. Seu professor de balé, então, entra no camarim. Um típico recurso dos anos 40 e 50, em termos de estética, era permitir que espelhos assumissem um lugar na composição de tal forma que o observador mal pudesse distinguir entre os reflexos e a pessoa em si. Esta é uma característica recorrente no cinema noir americano, um dos maiores exemplos seria a cena final de A Dama de Shanghai de Orson Welles (1947). A variante de Bergman deste recurso é tão efetiva quanto a de Welles, apesar de não tão óbvia. Quando o professor de balé e Marie começam a falar, nós o vemos primeiramente a partir de trás do primeiro plano, sua face visível no espelho. Marie está sentada no plano de fundo da cena. Uma cena depois, eles mudaram de lugar: agora Marie está na frente do espelho em uma réplica exata da imagem anterior.
Esses efeitos intrincados do espelho são fascinantes por si só, mas é o constante diálogo entre Marie e o professor que firma esse recurso. Marie reclama que ela sente como se seu figurino tivesse sido colado nela: ela acha difícil distinguir entre seu eu verdadeiro e suas performances profissionais “Você realmente acha que eu não entendo?”, o professor de balé responde: “você não ousa tirar a maquiagem e nem ousa ser maquiada”. As imagens do espelho, a partir das quais os personagens aparecem e desaparecem, tornam-se metáforas para os vários estados do eu que podem ser reais ou ilusórios. É difícil saber qual estado a imagem do espelho apresenta.
As linhas do professor de balé também almejam a Persona [Quando duas mulheres pecam], na qual o tema do espelho é fundamental, mas na qual o espelho em si é representado de maneira mais sutil, por vezes como a câmera do filme em si. Anteriormente no filme, o doutor diz para Elisabeth: “Você não acha que eu entendo? O sonho irremediável de ser, não parecer, mas de ser”.
Em um dos últimos filmes de Bergman, Depois do Ensaio, Rachel, a velha atriz alcóolatra, está sentada em um teatro de frente a um espelho rudimentar em que seu reflexo está bastante turvo. Sua reação é quase uma repetição direta das falas de Jenny na sua reflexão em Crise: “Ó, meu rosto… Deus, meu Deus!”. Desde o primeiro filme de Bergman até um dos seus absolutos últimos, o espelho é um recurso pelo qual as pessoas – independentemente do que está sendo refletido – veem a si mesmas de mais de uma forma.
Os personagens de Bergman frequentemente encontram-se em tais estados, entre a aparência e o ser, inventado ou não, e o espelho se torna (como também em Alice no País das Maravilhas) um portal entre fantasia e realidade. Para um diretor tão preocupado com a questão de quem ele “realmente” é, e quem os outros “realmente” são, a reflexão tanto obscura quanto iluminadora do espelho se torna a imagem completa.
Liv Ullmann (Tóquio, Japão, 1938) é uma atriz e diretora norueguesa. Ela foi uma das “musas do diretor sueco Ingmar Bergman. Ullman ganhou um prêmio do Gloden Globe como Melhor Atriz – Filme de Drama em 1972 pelo filme Os Emigrantes, e foi nominada para outros quatro prêmios.
[1] (Estocolmo: Norstedts, 1993)