«Quando a pátria que temos não a temos/Perdida por silêncio e por renúncia/Até a voz do mar se torna exílio/E a luz que nos rodeia é como grades».

Os versos de Sophia de Mello Brayner Andresen [1] convocam imediatamente à analogia entre mar e banimento. A força poética das águas surge como mote para evocar esse espaço de desterro. Se, ao não termos pátria, até a voz do mar se torna exílio, se essa luz é cárcere, pode-se a partir de tais ausências indagar a respeito do oceano como ponto de partida para desdobrar em nosso imáginario o espaço marítimo. Brasil e Portugal têm muito a dizer sobre esse lugar que nos une-aparta.

Um antigo ditado português já dizia: “Se queres aprender a rezar, atira-te ao mar”. Ou ainda: “Na água seus crimes não contam”. O medo diante do desconhecido e os perigos além da compreensão há séculos povoam nossos sonhos. Do mesmo modo, faz-se presente a ideia de que o mar é espaço em suspenso, onde as regras funcionam em outro diapasão.

Navios, falucas, batéis, vapores, barcos e balsas – todo esse conjunto diz algo importante sobre o nosso tempo. Como afirma Márcio Seligmann-Silva, é possível entender a história da modernidade «como história do Unbehagen (mal-estar, desabrigo)» pois ela se desdobra e se deixa narrar a partir de muitos navios (Seligmann-Silva, 2018, p. 35). Historicamente, em nosso mar se banharam três etnias fundadoras – indígenas, muitas vezes representados como aqueles que habitavam as bordas do continente, a fronteira entre o mar e a terra; africanos, trazidos à força pelo oceano no bojo do projeto colonialista; e portugueses, conquistadores ultramarinos e supostos navegantes por vocação. Todos de alguma forma se relacionando com as já referidas embarcações, esses «pedaços de espaço flutuantes», como Foucault define os navios.

Desde o período compreendido entre os séculos XV e XVII se impõe a discussão acerca da navegação ligada aos descobrimentos e à empresa colonialista. Inocência, passagem, ameaça: palavras que adquirem um sentido maior. Para tanto, uma das perguntas cabíveis seria: de quem é o mar? E, sobretudo, quem são os sujeitos que cruzam esse espaço, compreendido em sua dimensão política, hoje e sempre? Piratas, aventureiros, degredados, errantes, viajantes, migrantes, refugiados, fugitivos, escravos, peregrinos. A lista é interminável. Mas sua condição, bastante limitada. Alguns podem realizar a travessia mais do que outros.

Diz-se que Agátocles, tirano de Siracusa, numa expedição marítima contra Cartago, ao desembarcar, teria mandado queimar todos os seus navios e marchar contra a cidade, cujos habitantes derrotou. Evitava, assim, qualquer possibilidade de fuga ou retorno. Queimar as naus significaria ir em frente, sem pensar na possibilidade de voltar. Ou desistir. Os exemplos se somam na história, e alguns mencionam os conquistadores espanhóis Pizarro e Cortez. Gente que avançou, cruzou oceanos e destruiu.

Sobre o mar e naufrágios, vale a pena voltar a um episódio. A história consta de um relato quinhentista. Ronaldo Vainfas [2] afirma que, durante a iminência da tragédia, sobreviventes optaram por lançar carga humana ao mar, para aliviar o peso do batel. Escolheram, segundo o historiador, um negro, um cristão novo e um louco. Relatos de tragédias nos dizem muito, e curiosamente, hoje, continuam a fazê-lo. Das velas portuguesas aos dramas contemporâneos, a relação entre alteridade e espaço marítimo navega conjuntamente no imaginário coletivo. E fica a pergunta: em cada época, quem são os primeiros a serem atirados aos perigos do mar?

São as águas a grande promessa da carta de Caminha ao soberano de Portugal, e não a terra, como via de regra se imagina: o lugar será proveitoso por causa das águas que tem. Elas fertilizam, enriquecem, dão vida àquele chão. Através delas chegam as caravelas portuguesas, nelas deslizam as canoas dos nativos. E nessas águas muitos dramas e crimes irão acontecer. O registro do encontro entre indígenas e portugueses se pauta pela ênfase na suposta cordialidade dos primeiros e na convicção do colonizador da total falta de crenças ou de lei que os organizasse. Portugal traria a ordem e, mais importante, a semente da fé. No entanto, algo surge ali como um pequeno chiste em meio ao relato tão convicto da superioridade lusa: índios e colonos se encontram, mas não se efetiva inteiramente a comunicação porque “o ruído do mar atrapalha” – palavras do escrivão. Deliciosa ironia da carta, cujo objetivo era informar ao rei as potencialidades da nova terra, alcançada por um perigoso mar, um mar (na visão dos portugueses) para sempre de chegada, espaço de conquista e dominação. Mas as águas podem trair – é possível afundar, naufragar… e o oceano aparece como elemento que, apesar de facilitar o acesso dos portugueses ao novo lugar, pode também impedir com seus ruídos a conversa entre os estranhos. Se barulho não houvesse, o que diriam uns aos outros? Em que língua? Poderiam todos de fato exprimir seus pensamentos mais escondidos?

Surge então esse mar como testemunha nada emudecida: ele produz ruídos, emite barulhos, sussurra outras histórias. Uma parte delas se pode ainda desvendar, indagando sobre o caráter mais dramático do oceano – quando ele surge como lugar político, por onde podem ou não transitar os sujeitos.
Atravessando os séculos, é possível pensar em como o oceano surge como arena de disputas e de grande simbologia. Sujeitos escravizados e marginalizados são aqueles que em geral protagonizam essas terríveis histórias ainda por contar. Quem atravessa o mar, como, porquê, e, sobretudo, onde eles chegam – e se chegam. Tratam-se de perguntas que movem esta pesquisa: errantes, degredados, párias, (i)migrantes e refugiados nos convidam a problematizar esse tema incontornável do mundo contemporâneo.

Leila Danziger [3] lembra que à história do mar Mediterrâneo se acrescentam hoje novas e terríveis camadas de sentido, uma vez que ele se encheu de embarcações precárias, e lugares de nomes como Lesbos, Lampedusa e Kalymnos habitam nossa mente como uma memória do desespero contemporâneo, em um «fluxo migratório ininterrupto, em que inexistem identificações dos refugiados, mas apenas nomes de praias e portos, coordenadas geográficas, números e descrições aproximadas de corpos» (Danziger, 2018, p. 25).

Os indivíduos se transformam em números, estimativas, papéis sem nome ou fichas de identificação empilhadas. Como o corpo do menino sírio Aylan Kurdi encontrado morto em uma praia da costa turca, não há palavra suficiente para nomeá-los. Mas há que se empreender o gesto.

O assunto surge como pauta obrigatória nas discussões de hoje, em que nacionalismos se agudizam, o crescente fechamento de fronteiras é preocupante, e a atitude de exclusão contra migrantes e refugiados se torna visível em discursos ensandecidos como os de Donald Trump, entre outros. Uma massa de mais de 65 milhões de pessoas vive atualmente a situação de deriva e desabrigo. É preciso dar visibilidade, convocar o olhar e a indignação diante de tanta atrocidade. Porque tudo isso está muito perto, mas vem de longe. São histórias de migrações forçadas, diásporas individuais e coletivas, relações assimétricas entre colonizadores e colonizados. E o mar como estrada líquida.

O limite é delicado, e consiste em pensar como figurar poeticamente essa dura condição. Como toda crise humana, pode e deve ser contemplada pela arte para que se possa ir além do mero documento ou da retórica da boa vontade. Para que se evite que o Outro se torne o “dócil corpo da diferença” nos discursos contemporâneos do multiculturalismo, como alerta o crítico Homi Bhabha. Para que não vire oportunismo midiático, mero assunto, simples renovação de pauta. É preciso mais, é necessária antes de mais nada uma postura ética diante dessas imagens.

Somos todos viajantes e esse espaço de intervenção é no aqui e agora, como nos fala Bhabha: “O passado-presente torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, do viver” (2010, p. 27). E é preciso escolher comprometer-se, não desviar o nosso olhar. Se tais embarcações se encontram impedidas de lançar âncora – navios que não atracam em lugar algum e permanecem em espécie de limbo, – aqui a página e a tela as acolhem. Como afirma Raphael Fonseca, «o tempo e o espaço podem separar os botes e os navios, mas o medo de fugir e de chegar, além da dúvida sobre a vitalidade do corpo nessa trajetória, é latente – e não pode ser esquecido» (Fonseca, 2018, p. 17).

Rodeados pelo mar e suas representações, seguimos perplexos procurando entender o nosso tempo a partir de projeções de um passado que não cessa nunca de produzir sentidos. Náufragos também, porque sobreviventes de um tempo penoso para a humanidade, em que sujeitos deslocados à força sucumbiram.
Faz-se necessário, hoje, mergulhar de fato na experiência da escuta desses ruídos e vozes que vêm do mar, pensando em suas ressonâncias arcaicas. Essa é tarefa ética que se impõe.


Stefania Chiarelli é Professora Adjunta de Literatura Brasileira na Universidade Federal Fluminense, realizou os estudos de mestrado em Teoria Literária pela Universidade de Brasília (1997) e doutorado em Estudos de Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2005). Publicou os ensaios O cavaleiro inexistente de Italo Calvino – uma alegoria contemporânea (1999) e Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum (2007), e co-organizou as coletâneas Alguma prosa – ensaios sobre literatura brasileira contemporânea (2007), O futuro pelo retrovisor: inquietudes da literatura brasileira contemporânea (2013), Falando com estranhos – o estrangeiro e a literatura brasileira (2016) e Atores em cena – o público e o privado na literatura brasileira contemporânea (2017).


Bibliografia: [1] Sophia de Mello Brayner Andresen, In Livro Sexto, p. 48. [2] Apresentação in Madeira, Angélica. Livro dos naufrágios: ensaio sobre a história trágico-marítima. Brasília: UnB, 2005. [3] A professora, poeta e artista visual apresentou a exposição “Navio de imigrantes” em 2018, sondando formas de representação dos trágicos deslocamentos pelo Oceano Atlântico e o mar Mediterrâneo.

Publicado por:Philos

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