A pós-modernidade tem como principal característica a crise das grandes narrativas e um desencantamento com a ideia de um futuro melhor, levando o homem a viver um presente possível, dentro de sua efemeridade.
No dia 28 de novembro de 1947, Artaud, ao declarar guerra aos órgãos, percebia e intuía haver chegado a hora de libertar o corpo de uma anatomia clássica, levando-o a uma experimentação extrema e, por vezes, insana; abrindo a possibilidade de re(de)senhar um corpo sem órgãos, aberto ao infinito.
As explicações durante a modernidade, sobre o mundo, a história, a vida e o futuro, foram em grande parte influenciadas pelo marxismo, cristianismo e o iluminismo, cujo objetivo era levar o homem ao conhecimento na direção da construção de um mundo baseado na razão e na universalização de seu próprio Deus.
Renunciar ao fígado que deixa a pele amarela, ao intestino que expulsa o lixo, a esse organismo construído durante a modernidade, e retomar um corpo sem órgãos, livre do juízo e perseguição de Deus, da sedimentação que lhe impõem formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas e transcendências, cujo objetivo seria unicamente extrair um trabalho útil, agora passa a ser uma necessidade cada vez maior do homem.
A existência de um real-realmente-real, colocado de forma totalitária a outrem, através da estruturação de grandes narrativas, que oferece um projeto utópico de futuro, começa a ser questionada.
O corpo sem órgãos, antes organizado, significante e significado, intérprete e interpretado, sujeito, começa a experimentar o desviante, o depravado e o vagabundo, antes mantido na marginalidade ou na invisibilidade. Logicamente, desfazer o organismo supõe agenciamentos, circuitos, conjunções, superposições e limiares, passagens e distribuições de intensidade, territórios e desterritorializações. Questões que as artes, diante da incerteza das grandes narrativas, de um modo geral, começam a tocar, mergulhando no que nos resta: um presente a ser modificado, experimentado e vivido, independentemente de bom ou ruim.
É chegada a hora de experimentar a insânia, paranoica, esquizofrênica, masoquista e drogadida, de repensar o corpo onde únicos orifícios são cu e boca, alimenta e defeca, costurar os olhos, o ânus; necessário não enxergar e não respirar, caminhar com a cabeça, cantar com o sinus, ver com a pele. Onde a psicanálise diz Encontre seu Eu, necessário desconstruí-lo, substituir anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação, ir ao encontro dos Eus, corpo sem órgãos, essa é a questão de vida ou morte, juventude ou velhice, tristeza ou alegria, é onde tudo se decide.
A pós-modernidade não busca qualquer utopia, nem deseja legitimar qualquer ordem, ela é o próprio exercício de uma insânia baseada no descrédito e no ceticismo direcionado contra esse “real” destituído de todos os seus fantasmas, e que criou a ideia de um mundo ideal a partir de uma higienização dos devaneios humanos e na exclusão de parcela da sociedade. Logicamente, essa perda de uma referência utópica e o movimento do sujeito para si-próprio, em um momento de grande urbanização e acentuação do poder através dos instrumentos de comunicação e do dinheiro, produzem assimetrias profundas na sociedade, geradoras de conflitos individuais e coletivos.
Para Lyotard, a queda das grandes narrativas abre a possibilidade de lidar com a incerteza, com aquilo que não está garantido. É esse território de incerteza e desconstrução que as artes passam a explorar, seja através de uma angular na direção da realidade como ela realmente é, seja através do exercício minimalista ou barroco dessa mesma realidade, trazendo à tona personagens, práticas e desejos, antes, fantasmas mantidos na invisibilidade e atuando em guetos, ou através de uma releitura de sua própria prática. Cabe às artes responder para cada corpo: qual tipo? Como é fabricado? O que prenuncia? Que coisas inesperadas traz?
Sempre haverá uma relação muito particular de síntese e análise para cada corpo, produção infinita. São passagens, subprodutos, nada de estagnação. Necessário honrar o demente; o corpo é tão-somente um conjunto de válvulas, represas, comportas, taças ou vasos comunicantes, um nome próprio para cada um, o que povoa, o que passa e o que bloqueia? Um corpo feito de intensidades, por onde elas passam e se distribuem, um corpo não-espaço e sem estar no espaço, matéria intensidade a ocupar o espaço… Desfazer o organismo nunca foi matar-se, mas, abrir o corpo a conexões; cabe ao artista arrancar a consciência do sujeito para fazer dela um meio de exploração; arrancar o inconsciente da significância e da interpretação para fazer dele uma verdadeira produção. Para isso, se faz necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se recomponha a cada aurora, ter pequenas provisões de significância e de interpretação, também de subjetividade, com prudência, a arte em doses e consciente do perigo da overdose, nada de pancadas de martelo, mas o uso de uma lima fina.
Existe uma convergência fundamental entre a ciência e o mito, a embriologia e a mitologia, entre o ovo biológico e o ovo psíquico ou cósmico; cabe ao artista drogar-se sem droga, embriagar-se com água pura para abrir-se a esse corpo sem órgãos.


Carlos Pessoa Rosa (Brasil, 1949). Escritor e ensaísta vencedor do prêmio MEC – Literatura para Todos (2010) e do Prêmio UBE-CEPE (1998). Publicou pela Pequeño Editor (Argentina), pelo Coletivo Dulcineia Catadora (Brasil) e na Amazon.com. Editor do Meio Tom.

Publicado por:Philos

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Um comentário sobre ldquo;Colagem pós e Artaud com seu corpo sem órgãos, por Carlos Pessoa Rosa

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