autorretrato, composição e espaços de liberdade
O impulso ao movimento pode vir de sensações, temas e casualidades que despertam, incomodam ou provocam. Essa comoção se desdobra em minha prática artística em uma dinâmica cíclica de observar e traduzir. Primeiro o contágio, na sequência a comoção e por fim a feitura do objeto artístico que terá sua vida própria abrindo novas questões.
De natureza biográfica, desdobro em meus trabalhos questionamentos do cotidiano como a experiência de ser mulher, a relação com o corpo e os sentidos, influências afetivas, ocupação de espaços públicos e privados e o consumo de imagens em velocidade e excesso. Questões e descobrimentos de práticas artísticas relacionadas a essas pesquisas atuais em poéticas de corpo, fotografia, videoarte e colagem motivaram as reflexões que comento na sequência.
corpo e registro
Entre os campos de artes visuais e cênicas, relaciono poéticas de corpo, autorretrato, videoarte e colagem, mesclando linguagens em narrativas que refletem sobre movimento e espaço.
O autorretrato é um recurso de construção potente para poéticas na fronteira entre dança, performance, fotografia e vídeo. A visualidade da dança toma outra relação com o espaço quando pensado para o registro fotográfico por características inerentes à própria linguagem da fotografia, onde o espaço passa a ser tomado a partir do recorte do quadro.
a dilatação desejada
Fazer um autorretrato é abrir diálogo com sua própria imagem, editando e construindo a partir dela. É um território que permite experimentar uma identidade mais livre por estar desamarrado de um lugar social e público. A bidimensionalidade do registro instiga a pensar esse corpo graficamente e também a colocá-lo em relacionamento com o espaço, ocupando-o.
São recorrentes à minha prática questionamentos que dizem respeito a conceitos como beleza e comportamento. A intenção é deixar que as imagens venham ao corpo com sinceridade, em sua natureza potente e autônoma, muitas vezes sarcástica e em uma ambivalência de artificialidade e espontaneidade.
Pertence a essa pesquisa o experimentar da própria imagem refletindo sobre a existência em um corpo feminino, em uma busca por uma relação amigável com minhas próprias características, praticando um olhar de emancipação com relação a um roteiro pré-estabelecido de ações dentro de uma ideia de moralidade e normativas de comportamento e indumentária.
Os autorretratos têm sido um lugar para dilatar a visão sobre meus próprios limites e ações, um espaço livre para performar linguagens de corpo e identidade de onde trago a liberdade experimentada para o cotidiano. Dar liberdade para si mesmo ajuda a dar liberdade para o outro, aumentando a capacidade de aceitação com relação a outras formas e ser no mundo. É também uma maneira de lidar com pontos de vulnerabilidade a partir de um lugar lúdico e seguro.
coreografar recortes
O movimento da imagem é uma preocupação presente no meu processo de criação. Pensar sobre fluxo e imobilidade pode começar no corpo mas sua presença está em todas as etapas do processo criativo como a seleção e edição das imagens.
O pensamento sobre movimento e gestualidade também está presente na composição de colagens durante o processo de coleta, apropriação, corte ou rasgo. Começo enxergando o espaço bidimensional como uma superfície onde cada elemento tem seu próprio gesto, exigindo respiros e influenciando a vizinhança com seu formato, textura e cor. Em contato, os elementos encontram seus lugares: se sobrepondo, pedindo espaço, rotacionando ou se adaptando em uma nova escala e até sofrendo modificações em seu formato original.
Na criação de narrativas em vídeo, o fator tempo agrega camadas na composição coreográfica dos fragmentos possibilitando uma construção rítmica extremamente flexível, onde o movimento do corpo pode transitar com facilidade entre uma sequência real e factível e uma ficção completa. As possibilidades digitais de edição permitem trabalhar o corpo como uma matéria plástica e gráfica – ferramentas valiosas da contemporaneidade. Vejo pouca diferença entre corpos e formas abstratas quando componho uma colagem, um GIF ou um vídeo. Tudo se torna matéria para coreografias de recortes.
espaços de liberdade
A grande beleza do fazer artístico é o próprio fazer. Os descobrimentos poéticos se dão no processo, na ação e na vivência, e não apenas no campo da racionalidade ou na idealização do projeto. Para mim, a criação artística está na curiosidade e no desejo de ver nascer alguma coisa nova a partir de um contágio que comove. É um risco, pois alguns processos não levam a um resultado que responda à altura da faísca que deu início à pesquisa. Mas o fazer artístico não responde a fins de resultado. E que se mantenha assim o fazer poético: como um espaço de liberdade para exercícios de subjetividade, preocupado em abrir campos sensíveis, levantar questões e possibilitar vivências ampliadas.
Juliana Coelho assina como Bomju (Passa Quatro, Minas Gerais, Brasil, 1991). É artista visual, designer gráfica e produtora cultural. Pesquisa poéticas do corpo, fotografia e videoarte. É cofundadora do Clube da Colagem de Curitiba (CCC) e atua junto ao coletivo de artistas promovendo investigações, oficinas e exposições acerca da linguagem da colagem.