Sobre o romance “Oito do sete” de Cristina Judar

Fechei as páginas do primeiro romance de Cristina Judar, Oito do Sete, e deixei Roma, a cidade de todos os desejos inúteis e patéticos, calar-me.
Tive que ler duas vezes para tentar entender com minhas próprias vontades o que esse livro traz, o que por si só é uma enorme traição. Pois você sabe, fazer uma resenha é sempre querer enquadrar o novo dentro de alguma normalidade. Só agora pude assumir para mim mesmo que esse livro, felizmente, fez com que eu deixasse de ser escritor ou crítico e voltasse a ser uma criança perplexa diante da ciranda de interesses mundanos ou humanos, ou mesmo diante das guerras entre os astros no céu. Então, disse para mim mesmo: não tenho como tentar abordá-lo apenas por sua forma, sem dúvida bela e desafiadora, mas principalmente por seu conteúdo desconcertante, o que nos reafirma que num bom livro não imperam formalismos, que forma e conteúdo se definem mutuamente e todo experimentalismo precisa de uma experiência muito foda por trás.
Aliás, é sempre criticando a forma que os resenhistas querem se validar. Consideramos que críticos menores comentam apenas sobre a profundidade eventual dos personagens, sem se atentar para a forma do romance como arte narrativa. E pior ainda seria a pessoa que não comenta nem forma nem personagens, mas se atém a entender o enredo. Mas, no caso desse romance, desafio qualquer um a tentar repor qual é a historinha que está sendo contada. Assim, me coloco prazerosamente na condição de amador, mesmo porque o amador ama; o crítico disseca.
Vamos lá: o romance tem quatro partes, correspondentes a seus quatro narradores, duas mulheres, Magda e Glória; Serafim, o anjo mitológico; e a cidade de Roma. Cada um conta a sua versão da história, na maior parte das vezes contraditórias entre si, um pouco como nos romances de Faulkner. Porém, no mestre norte-americano, todos os personagens têm a mesma origem social, então ao final até conseguimos recompor a unidade espacial e temporal de sua sociedade, mesmo com suas contradições. No romance de Cristina, conforme vamos chegando às últimas páginas, o que temos é quase um atestado da falência da arte de narrar, se essa for entendida pela vontade de dar um sentido à vida humana. Não precisamos narrar para dar sentido, deixar um testemunho de existência já está de bom tamanho. É quase como se as estrelas quisessem nos contar a nossa história, mostrando como somos completamente aleatórios em nossas intenções. Assim, tentarei retomar o enredo de forma artificialmente linear, o que não acontece no romance.
Subentende-se que estamos em uma grande cidade brasileira, possivelmente São Paulo. Certo dia, dois casais de amigos, um deles gay, o outro lésbico (mas é um erro enquadrá-los assim, como se verá mais tarde), decidem participar de um clube de sexo, na casa de um amigo de um dos rapazes, para viverem a experiência heterossexual. Ao que tudo indica, foi Magda quem primeiro propôs a situação ao assumir que depois de um tempo as relações sexuais de exclusividade podem ser bem tediosas. Mas ela é também a primeira a abortar a missão, quando a coisa já está acontecendo. Sua companheira, Glória, consegue transar com Rick, namorado de Jonas, embora na medida em que seus espasmos crescem juntos, parecem perder a conexão, que talvez nunca tenha existido de fato. Magda comenta com Jonas, restringidos a voyeurs involuntários, que eles não vão conseguir transar também entre si: “somos gays demais para isso”.
De fato, aprendemos ao longo da história que Glória havia tentado algumas vezes em sua vida se relacionar com homens, mas não por recalque ou por uma sincera bissexualidade, e sim porque é fluida demais para se enquadrar nisso que chamamos de orientação sexual, ou mesmo em qualquer atitude que consideramos interessante para o bem viver. Magda, ao contar a história para nós ou para si mesma (nunca sabemos ao certo), parece se ressentir dessa suposta bissexualidade de sua namorada, embora ela tente muito mais ser mulherzinha do que a outra, e tenha sido ela quem propôs a experiência.
Quanto aos rapazes, Ricky transa com Glória porque tem o hábito de performar como ativo em suas transas com o namorado Jonas, ambos reproduzindo certa heteronormatividade, baseada na dualidade de papéis, mesmo que ele se deixe penetrar pela amiga. Todos esses ruídos geram uma crise em Magda, que se retira para o espaço de descarrego do banheiro, completamente encharcada por suas próprias águas, que começam a vazar. Aliás, 08/07 é a data em que, mitologicamente, toda a água do mundo seca. E o capítulo que nos conta esse evento mitológico distópico, mesmo aparentemente descolado do resto da história, é de alta relevância, principalmente quando lemos mais à frente que “sentimento é mar. Emoção é onda”. É a falta desses elementos que traz o fim do mundo.
Com o passar das páginas, descobrimos que a noite no clube de sexo foi o começo do fim para ambos os casais. Glória e Rick acabam imigrando para Roma, onde moram juntos durante poucos meses tentando ser um casal “normal”. Nesse ínterim, Glória engravida e, quando descobre, agora sozinha, já é por sofrer um aborto. Ao tentar ser ninguém, não poderia sequer ser mãe, e seu corpo responde de acordo.
Rick, nessa mudança de país, tenta ser artesão, depois designer de interiores, e acaba se concentrando em criar pinturas a óleo e aquarelas que o tornam famoso e cheio da grana. Mesmo assim, passa a viver de graça na casa de um casal heterossexual, como terceiro membro da relação. Na visão de Glória, a experiência romana de Rick serve para que ele se torne menos um artista e mais um vendido ao cinismo niilista, o que se reflete em suas afetividades dominadas por relações de poder.
Aqui no Brasil, Magda tentar repor sua vida após a separação, muda de apartamento e se realiza cada vez mais como uma estilista de sucesso, com direito a desfile em Nova Iorque, onde tenta viver suas “loucurinhas”. Nesse processo, acompanhamos alguns fragmentos de sua história futura e pregressa à sua relação com Glória. Revela ter tido uma relação muito entranhada com o pai (talvez por isso nunca se interessou por outros homens). O pai havia morado numa cidade do interior para aonde ela retorna de moto, numa espécie de jornada para recuperar sua identidade andarilha e viver mais leve, mesmo tendo uma profissão criativa. Mas ela sabe que Glória é muito mais capaz de ser desenraizada, mesmo sob o preço de se tornar fragmentada, imigrando e flanando de um emprego a outro, fugindo cada vez mais de sua formação inicial em Letras que a capacitaria, a princípio, a fechar melhor uma narrativa sobre si mesma e sobre o mundo. Mas ela não quer contar-se em linha reta, e sua transgressão passa a ser trabalhar como empregada doméstica para uma senhora italiana. Viver o cotidiano desventuroso passa a ser sua aventura mais digna. E enquanto tenta se recuperar do aborto em Roma, em suas memórias de fatos e em seus sonhos relembrados, se ressente de que sua ex-namorada, mesmo sendo estilista, sempre teve diante de si um caminho reto, como um “tapete vermelho que ela desenrola aos poucos diante de si”. Não sabemos quem é a dona da verdade, sabemos apenas que ambas buscam sinceramente seu próprio caminho.
No final das contas, descobrimos casualmente que o casal de rapazes volta a ficar junto, e que Magda conhece outra pessoa, numa praia, o que permite que ela também crie outra mitologia mais apropriada para si mesma, já que, ao longo de toda sua narração, sempre afirma sua existência não a partir da sociedade humana, mas a partir de eventos cósmicos e naturais misturados a narrativas virtuais vindas do cinema, da música, do sonho e da fantasia, sem se refugiar num misticismo. Como ela nos diz em dado momento, “flashes percorrerão a galáxia a perseguir a síntese de sua vida num retrato”.
Esse poderia ter sido o final da história, e então teríamos um romance LGBT, mesmo que o enredo contradiga totalmente a ideia de que é saudável ter uma orientação sexual fixa, ou mesmo um sentido fixo de identidade, o que normalmente se espera de um romance desse gênero. Porém, nas últimas duas partes do livro, narradas por Serafim e pela cidade de Roma, o romance acaba ganhando muito mais amplitude do que um enredo sobre sexualidade, ou mesmo sobre relacionamentos, o que no fundo ele nunca correu o risco de ser, desde a primeira página.
Não sabemos se Serafim é um anjo que realmente apareceu para as duas mulheres em momentos diferentes ou se é uma intervenção poética da romancista para criar uma metáfora, e essa dúvida é absolutamente engenhosa. Explico: não se trata de um romance com elementos fantásticos, nem de um romance realista, e sequer uma prosa poética ou filosófica, embora tenha tudo isso se alternando e interseccionando. Tudo aqui é verdade e mentira. De todo modo, sendo metáfora ou personagem, Serafim aparece para Magda em um bar, deixando-a apaixonada por ser um indivíduo sem gênero e mesmo sem individualidade, e essa leveza insustentável para um humano a desconcerta. Sobretudo, Serafim é um ser totalmente distante das paixões humanas – e talvez por isso o mais humano de todos – o que faz com que relativizemos tudo aquilo que entendemos como as belas intenções do viver, ainda mais do que Glória. Serafim não tem peso, medida ou razão de ser. É um anjo que vem para ajudar, mas até sua compaixão é forjada, porque o amor é coisa dos homens, é coisa que não vem do céu, é coisa que produz carne e civilização também. E isso não é de todo mau.
Serafim também aparece para Glória num museu em Roma, talvez como um quadro, talvez aparecendo de verdade, nunca sabemos. Quando ele próprio passa a contar sua história, e sua versão sobre os eventos que unem e separam os outros quatro, entendemos que ele também estava lá no clube de sexo. E esse seu contraponto torna patética aquela tentativa dos quatro de serem transgressores pelo sexo sem posse, assim como é igualmente patética a tentativa de formarem casais heteronormativos, com papéis definidos, mesmo sendo lésbicas e gays. Pois nenhum modelo de relacionamento é melhor que o outro, não se trata de debater modelos, mas até que ponto, em cada caso específico, as afetividades são realmente construídas.
Nesse sentido, vale lembrar que enquanto Glória e Magda moravam juntas, tinham a brincadeira de plantar, em pequenos vasos espalhados pela casa, sementes aleatórias junto com pedaços de bonecas de plástico e outros objetos inanimados, o que a meu ver relativiza a própria ideia de maternidade que a mulher possa representar hoje em dia, pois elas observam que muitas vezes a terra nos vasos cospe para fora os pedaços de plástico misteriosamente, abortando a missão da inseminação artificial metafórica.
Como eu disse, esse não é um livro que trabalha na dualidade entre metáfora e realismo, prosa e poesia. Não é um livro que tenta repor a memória dos fatos, mesmo porque se apresenta como totalmente oposto à visão psicanalítica de que a realidade explica o sonho, ou o sonho, a realidade. Aqui, ao contrário, as duas instâncias são uma só, por isso não é à toa que as personagens femininas se lembrem muito mais de sonhos que tiveram no passado, tornando sua vida mais filme que imposição biológica ou narrativa histórica e social. Essa é uma das características mais geniais do romance de Judar, pois coloca em segundo plano a historinha dos dois casais “alternativos”, que por si só já seriam o belo retrato de uma geração. Esse traço narrativo já fica evidente na primeira página, em que Magda relata seu nascimento mais como um evento mitológico do que biológico. As virtualidades do mundo da pós-verdade ajudam a compor as individualidades no século XXI.
Se o romance tivesse terminado aqui já seria excelente, mas com a narradora Roma alcançamos ainda outro nível. Roma é a Cidade por excelência, o modelo civilizacional de dominação e consumo, constantemente estuprada e também ela é assassina de seus algozes. O romance fecha (ou se abre ainda mais) com o depoimento dessa espécie de Cidade das Cidades, trazendo a perspectiva de que o que importa mais nessa história não são os dramas individuais, mas o próprio modelo civilizacional patriarcal do qual fazemos parte, e que influencia até nossas formas de narrar tão assertivas, e que nos colocam em crise.
Assim, o que temos é uma estrutura romanesca em que a contradição entre as visões de Magda e Glória é superada pela visão de um anjo e de uma cidade que absolve os inimigos, ao mesmo tempo que os consome. Em dado momento, Roma nos diz que aprendeu “a ser a mãe cautelosa de vísceras desobedientes. Pois não tive filhos, tive entranhas estranhas a mim.”
Aqui, preciso ressaltar um ponto: não se trata de uma narrativa mitológica no sentido clássico, essa fórmula já muito usada de validar a modernidade da pós-verdade a partir de uma ancestralidade ainda presente, mesmo tendo como narradores um anjo e a Cidade Antiga. Normalmente, quando um romance traça elementos mitológicos, é apenas para retratar um presente ressentido ou nostálgico. Esse não é o caso da obra de Cristina. Aqui, os elementos mitológicos mais recorrentes, mais que Serafim e a cidade de Roma, são justamente os quatro elementos da natureza – água, ar, fogo e terra – presentes de muitas formas em toda a narração para explicar, ou melhor, para celebrar (pois “explicação” é uma tarefa do projeto iluminista), uma modernidade em que todas as temporalidades coexistem. Mais do que isso, essa perspectiva mitológica original, juntamente com a presença desses dois narradores inusitados, borra os limites entre essa eterna ideologia de que existe um mundo interior do ser humano separado de um mundo exterior onde acontece a vida real. Aqui as duas coisas se confundem para nos perturbar. E como eu fiquei perturbado (o “eu” precisa morrer)! Porque estamos acostumados a pensar que o mundo interior da subjetividade é um retiro do mundo, por isso temos uma escritora como Clarice Lispector em que o mundo interior, mesmo em crise, tenta ganhar sua própria dignidade diante do tédio do cotidiano, ao menos até “A Hora da Estrela”. Do mesmo modo, pensamos, com dois séculos de atraso, que o realismo na literatura é capaz de nos mostrar objetivamente a história, mesmo que relativize seus próprios procedimentos narrativos. Que cilada maravilhosa Cristina Judar nos deixa em seu primeiro romance!
Alexandre Rabelo é autor do romance Nicotina Zero (Editora Hoo, 2015), vencedor do 5º. Prêmio Papomix da Diversidade na categoria Livro do Ano. Dramaturgo do espetáculo Anatomia do Fauno, foi vencedor do prêmio especial Suzy Capó, no 24º Festival Mix Brasil, em 2016. Também tenta ser ninguém.