A idéia de afrocentricidade que melhor foi organizada e categorizada por Molefi Kete Asante visa trazer para o centro da discussão a ‘localização’ do negro dentro da sociedade; por localização entende-se a capacidade que o negro tem de ser o principal agente das mudanças necessárias ao seu desenvolvimento e da sua comunidade.
Sabemos que o mundo ocidental foi erguido sob as fundações do que chamamos equivocamente de ‘filosofia grega’ e que essa filosofia nomeou, classificou e organizou praticamente toda a cultura de que vivemos e dispomos desse lado do globo. A possibilidade que a afrocentricidade nos traz como um paradigma de libertação está na possibilidade de localizarmo-nos dentro dos nossos termos filosóficos e por isso políticos, uma vez que habitamos o mundo numa configuração filosófica incompleta por conta do assalto a todo conhecimento existente na biblioteca de Alexandria, no Egito, o conhecimento e as possibilidades de bem viver, tanto em África quanto na diáspora, estão limitadas à leitura de mundo que os ditos sábios Aristóteles, Platão, Sócrates literalmente roubaram e mal organizaram. Sabendo da veracidade desses fatos e não os tratando daqui para frente como dados negociáveis, fica evidente a tentativa de não aceitar que o Egito faz parte do continente africano, assim como negar a capacidade desse continente de produzir conhecimento e também de produzir filosofia. Autores de envergadura como Thomas Hobbes afirmavam que não era necessário estudar sobre a África, pois se tratava de um continente sem história, que nada havia legado ao mundo em termos de conhecimento.
A filosofia parece ser a principal arma para ocupar o território do conhecimento, pois ela nomeia, categoriza e também nega aquilo que ela mesma não é – pelo menos dentro da lógica ocidental do que seja conhecimento científico e válido. O paradigma da afrocentricidade nos fornece a possibilidade de nos reorganizarmos em nossos termos, sobretudo filosoficamente, visto que o paradigma ocidental-europeu não nos contempla em nossa totalidade, nos nega a produção de conhecimento e disputa de território e, sobretudo, nos desumaniza. É importante deixar assinalado que a não aceitação do paradigma ocidental-europeu não se trata por ser de brancos, mas por ser um paradigma construído com bases controversas, e basicamente está comprometido com o racismo, machismo, sexismo dentre outras formas de dominação que foram desenvolvidos dentro do mesmo.
O capitalismo desempenha a função de perpetuar as práticas colonialis-tas através do uso de epistemicídio, monoculturalismo e da invisibilização de outras culturas, produção de saber e formas de ler o mundo, mantendo seu status hegemônico. Não seria tomando ciência de que a epistemologia desse ocidente não nos representa em nossos termos que deveríamos pensar o nosso deslocamento do mesmo? Qual seria então o nosso Paradigma Afrocentrado Orientado à Interioridade? De que forma a filosofia africana e os saberes produzidos pelas comunidades Afro-ameríndias poderiam nos proporcionar uma localização nos nossos termos?
Primeiramente é necessário colocar algumas questões no jogo. O conceito de empoderamento bebe bastante da afrocentricidade por entender que, quando o negro busca o empoderamento, ele o faz buscando estar dentro dos seus termos. À medida que o negro tem acesso à educação, serviços básicos de saúde, e oportunidades de emprego em níveis de equidade, pode-se dizer que empoderamento e afrocentricidade parecem ser a mesma coisa. Mas se pensarmos no propósito e qualidade dessa educação, no nível de qualidade do sistema de saúde, no tipo de emprego e qual sua finalidade, não estaremos satisfeitos com nenhum deles; se pensarmos então profundamente na maneira como o capital incide sobre a formação dos indivíduos que estão sujeitos a ele, a nossa forma de ler o mundo se torna uma forma-capital de ler o mundo. Ter acesso aos espaços que nos são negados não é de forma alguma um esforço que não devemos fazer; tudo que nos é negado na sociedade é fruto da exploração da mão de obra dos nossos ancestrais e, por direito, somos donos também de toda essa riqueza, embora na prática não seja o que aconteça. É importante problematizar a nossa possibilidade de empoderamento no que diz respeito aos termos em que o mesmo se desenvolve. Empoderar dentro da lógica capital é ocupar um espaço de opressão, é distanciar dos nossos termos, é chegarmos nos espaços de poder esquecendo o valor da comunidade, porque é introjetado no negro o espírito de disputa.
O Brasil é, por exemplo, um país onde muitos desafios estão postos no que diz respeito a afrocentricidade orientada à interioridade dos negros. A filosofia presente no candomblé, nas rodas de capoeira, nas praticas tradicionais e nos saberes quilombolas são esse local de interioridade, e é importante lembrar que o candomblé e a capoeira foram considerados crimes nesse país. O quilombo é parte constituinte do povo brasileiro, sem a qual esse país não desenvolveria a cultura que tem, nem falaria da forma que fala; as comunidades quilombolas são reduto da filosofia africana e afro-ameríndias, filosofias essas que pensam a relação com a terra de forma integrada a si enquanto ser humano em sua dimensão ontológica. Não existe a possibilidade de se explorar da terra, porque a terra somos nós; não é possível tirar da terra sem restituir; restituição é um valor espiritual das comunidades africanas e indígenas. Não se pode pensar para o quilombo um tipo de direito baseado em pressupostos filosóficos que lhe são estranhos. Uma política pública que seja, que se aproxime do quilombo, é uma invasão do espaço e de sua cultura, independente da natureza dessa política. A questão da demarcação das terras quilombolas, por exemplo, é um entrave; os quilombolas são anteriores ao estado; a política do estado reconhece-os como tal, mas jamais demarcam suas terras, porque de marcar terra é dar território, e território é poder; o quilombo nasce, para além da necessidade de liberdade do jugo colonial, do desejo de criar uma local de poder, baseado em seu próprio modo de vida.Assumindo os valores culturais e filosóficos, podemos de fato exercer uma afrocentricidade orientada à nossa interioridade, respeitando nossas práticas para com o mundo, nosso senso de comunidade, perspectivando um local onde existamos com bases nos nossos termos e negociaremos, quando preciso for, com outras instâncias cientes do poder de nossas organizações, pautadas em nossa filosofia e modo de viver. Para tal, é necessário vontade política e engajamento dos negros para com essas políticas, fortalecendo as nossas instituições e multiplicando as escolas e universidades comprometidas com nossa emancipação político-econômica. E isso só é possível através de uma agenda política que contemple essa ideia de afrocentricidade.
Issa Mulumba (Salvador, 1990). Cantor, compositor e poeta, bacharel em Humanidades (Unilab).