Quando eu era ainda muito pequeno, meu pai nos deixou — e tão cedo. Na casa ficamos eu e mamãe. Eu me tornava adulto e ela envelhecia, e quando lhe perguntava sobre papai, ela dizia apenas do triste destino dele.
Quando fiz quinze anos, ela me revelou que papai havia se transformado num lobo. Um dia ele se transformou num lobo. Grande e cinzento. Então partiu. Falou da tristeza de saber o quanto seria impróprio a um lobo viver entre nós, os humanos.
Ouvi quieto o que me dizia. E compreendia suas tristezas. A saudade que tinha de papai misturou-se ao desconforto de sabê-lo obrigado a nos deixar. Ter outra vida, uma que talvez não gostasse ou conhecesse.
Um pouco antes de falecer, mamãe voltou a me falar de papai. Disse coisas acerca de lobos e me revelou que papai vivia num grupo de animais iguais a ele, num zoológico que ficava numa cidade distante de nós.
Quando mamãe faleceu, vendi tudo que tinha e fui morar na cidade em que papai estava, e fui até lá observar todos aqueles lobos, embora não soubesse, dentre tantos que via, aquele que seria de fato meu pai.
Logo passei a visitá-los com frequência, indo até lá todos os dias.
Por algum tempo apenas os observava, olhando nos olhos deles. Sentava diante do gradil que os cercava e observava, um a um, vendo como se comportavam. Às vezes alguns me olhavam, curiosos. Outras vezes, não, apenas me olhavam como se não compreendessem a minha disposição em observá-los, tanto e tão silenciosamente.
Depois passei a me mostrar vigorosamente a eles na esperança de ser reconhecido por aquele que seria meu pai. Era quando me colocava colado ao gradil e franzia o rosto como eles faziam, mostrando os dentes, balançando as mãos. Outras vezes apenas deitava no solo como eles também faziam, e observava, quieto como eles. Tão próximos, esperava que um dos animais manifestasse algo que me fizesse compreender que ali estaria meu pai.
Foi quando percebi que aqueles lobos não estavam bem. Famintos, pareciam atormentados pelo desconforto de uma prisão, e circulavam melancólicos mostrando o tédio das almas cativas.
Penalizado com o estado de penúria em que viviam, passei a alimentá-los com regularidade. Era quando levava até eles generosas peças de carne. Eu as jogava por sobre o gradil onde viviam e esperava. Observava quieto como comiam com ferocidade a carne que lhes dava.
Embora soubesse que papai fora vegetariano até o dia em que nos dei-xou, provavelmente ao se transformar em lobo, sendo aquela a sua nova natureza, também se convertera aos hábitos carnívoros, pois nenhum daqueles animais rejeitava a carne que lhes dava: comiam com a perpétua voracidade dos lobos diante do sangue e da carne.
Por um longo tempo continuei a visitá-los, sempre famintos da carne que lhes dava.
Tão semelhantes, afeiçoei-me a eles de maneira igual. Gostava de todos, mas queria saber por qual deles teria um amor incondicional.
Por longas horas após comerem, eu continuava a observá-los. Buscava na memória de criança um jeito, um olhar, talvez algum gesto que ainda lembrasse de meu pai. Esperava vê-lo repetido num daqueles animais — mas isso nunca aconteceu.
A saudade que tinha de seu afeto chegou a um ponto tal que um dia saltei por sobre o gradil que os cercava. Imaginava que pelo cheiro que eu ainda devesse guardar da infância, meu pai me reconheceria e viria até mim, me acolheria. Sabia do perigo que corria em meio a tantos animais selvagens. Mas o medo que tinha não era tanto que me privasse de uma revelação.
Não foi pouca minha desgraça. Todos aqueles animais, com exceção de apenas um, logo me cercaram. Então me atacaram. Dilaceravam meu corpo enquanto eu olhava aquele único lobo que se mantinha afastado, deitado e quieto sobre as patas dianteiras, à sombra de uma árvore.
Pois foi aquele que aceitei como sendo meu pai.
Deitado como estava, aquele lobo nada fazia, apenas observava todos aqueles animais dilacerando meu corpo, passivo e tão indiferente. Aquele lobo apenas observava o que me acontecia.
Mas, o que ele poderia fazer por mim em meio a tantos outros lobos ferozes e famintos que me atacavam?


José Angelo Rodrigues (Rio de Janeiro, 1954). Professor e escritor.

Publicado por:Philos

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