Abelardo fazia os melhores instrumentos musicais da cidade, quiçá do país dizia o comissário Ajenor da Silva, assíduo da marca “Seu Abelardo”, ora tão ocupado com os casos crescentes de desaparecimentos que até se esquecera de sua paixão, depois, é claro, de Deusa, a deusa, sua amada, amiga, esposa e, obviamente, a polícia, esquecia-se Ajenor da Silva do pandeiro. Diziam que tocava com maestria o chorinho e o samba, não perdia por nada a roda do boteco de Safira, sem duplo sentido, por favor, a viúva do árabe herdara as lojas do marido, mas não fora capaz de resistir ao samba, pagava gerentes e contadores e dedicava suas tardes e noites ao botequim, estrela maior da Cidade Baixa, cintilante sopro de Deus nas palavras do comissário e amigo Ajenor da Silva.
As línguas ferinas chegavam a apontar evidente caso amoroso entre Safira e Ajenor da Silva. Ela viúva, ele casado, exagerado no amor à esposa, diziam é culpa, gentinha desocupada! Imagine maldar amizade assim, tão azeitada e de tantos anos!
— Fui amigo do finado, cliente de mais de década. Maledicência! — defendia-se Ajenor da Silva, enfezado.
No entanto, se faltasse à roda de samba de Safira, lastimava-se, mandava desculpas por um e outro; a amiga e os colegas que desculpassem, os desaparecimentos tomavam todo o tempo e atacavam a gastrite, inferno a arder no meio do corpo sempre que algo lhe tirava do sério. E estava definitivamente transtornado. Caso sem solução, sem pista alguma. Os homens sumiam como que por mágica; onde se vê isso? Todo mundo sabe que assassinos em série preferem mulheres, ora.
—Mas quem falou em assassino, chefe?
— Cala-te, Paco! — as ideias se misturavam. Ajenor da Silva não conseguia concatenar sequer uma linha de lógica. Na cabeça, a roda de samba, as notas de Aguenta, Seu Fulgêncio; no estômago, a gastrite, inferno!
Saiu na edição de sábado do Jornal da Tarde. Esses jornalistas nem são tão… tão assim, não são. O repórter Casemiro ligara os pontos, os desaparecidos, além de homens, eram todos trabalhadores braçais.
— Como não me atentei a isso, agora esse pulha, energúmeno, levará os louros da lógica, energúmeno!
Ajenor da Silva bebia com devoção o suco de couve e limão que dona Deusa preparara, acalmava-lhe a gastrite o ácido e o amor da esposa.
— Carinho, preciso lhe falar.
— Diga, diga, carinho! Ah, já sinto a melhora! Mas diga, diga!
— Olhe, vou precisar buscar outra faxineira para esta semana, Adália se retirou, o marido desaparecido, será mais um dos seus casos?
Era só lembrar-se dos desaparecimentos e Ajenor da Silva já sentia reacender a brasa nas entranhas.
— Espera, mas me diga, diga, o que fazia o marido de Adália? Afinal uma pista, uma ponta de lã, obrigado, meu São Jorge, que bênção és tu, minha joia, meu carinho, contrata quem tu quiseres, paga quanto queiras!
Apressou-se à delegacia, era isso o que faltava, uma pista a conduzir as investigações que iam lentas, faltava efetivo, interesse da secretaria estadual, a prefeitura sem dinheiro, sempre o mesmo texto para o que interessa.
Paco, Paco, entrou o gabinete espiando à procura do assessor, ou melhor, que se faça justiça, assessor, escrivão, recepcionista, porta-voz y otras cositas más, pero esto és para otro cuento. Ah, Paco, luz daquela delegacia mal aparelhada, mas há tu, bendito Paco. Paco, Paco.
Paco surge dos fundos, também vindo do almoço, os beiços engordurados, o nó da gravata desfeito.
— Componha-se, Paco. Temos, temos — e dava tapinhas à face do garoto.
— O que temos, doutor?
— Temos a pista, Paco. Vamos sair, vamos sair. Adália perdeu o marido enquanto ele estava empregado na construção da nova rodoviária. Imagine, nova rodoviária, obra para marcar a gestão do novo prefeito, todos uns cães mijões a marcar território com placas, obras superfaturadas, enquanto enchem seus canis de ossos e ração. Canalhas!
Ajenor da Silva detestava políticos, detestava mais até do que aos jornalistas.
—Veja: pedreiros, estivadores, o jogador de futebol, o marinheiro, compreende, garoto? Não? Ah, asno! Todos trabalhadores ao ar livre, não me admira aquele endiabrado do Casemiro tenha largado na frente, mas não há de ser nada, é só uma cabeça de vantagem, eu sou cavalo velho e tarimbado, no fim ainda ganho com sobra, pulha, excomungado.
Passaram a tarde, Paco e Ajenor da Silva, a visitar obras, o cais, o Clube Atlético Asas, empreiteiras e, por último, Adália.
—Tudo batia, tudo bate, Paco; os desaparecidos eram todos trabalhadores braçais.
—Desculpe, doutor, mas não vejo aonde vamos com isso.
Ajenor da Silva também não, mas precisava largar; imperava pôr-se à corrida na raia ao lado de Casemiro. Afinal era ele, Ajenor da Silva, o cavalo com mais autoridade, o cavalo mais velho; é verdade, velho, porém experiente.
—Esse Casemiro da puta que o pariu que me aguarde! Vamos, vamos, Paco, é hora de relaxar!
Perdoem as margens que deixam este autor sem coração; é claro como água que quer reter o leitor, nosso deus maior; no entanto, nem tão desalmado assim, promete e promete cumprir: a história de Ajenor da Silva virá à tona. Aqui neste rápido painel, coisa de no máximo uma tela, interessa decifrar à frente de Casemiro o caso dos desaparecidos. Só assim manteremos impoluta a reputação de nosso herói, o que, obviamente, se note a desfaçatez do autor, nos permitirá contar o resto da história ou “A história de Ajenor da Silva”. Aí sim o painel terá escopo talvez para uma parede pública ou privada, quiçá, oxalá parede inteira no botequim de madame Safira! Eu prometo.
Ao menos dois homens desapareciam a cada mês, e o número começou a preocupar, além de Ajenor da Silva, os cidadãos. As mulheres passaram a buscar seus maridos e filhos no trabalho. Alguns homens se deslocavam em grupos. O prefeito, em discurso, chegou a prometer maior efetivo de policiais; no entanto, ficou só na promessa.
Foi de dona Deusa que veio a ideia iluminada adotada pelo doutor delegado. Era dezembro, já perto do Natal, e nenhum homem havia desaparecido ainda. Certa tarde, Ajenor da Silva entrou na delegacia parecendo muito contente, contente demais.
—Ora, meu caro, meu caro Paco, eis que as ideias se iluminaram, e meu São Jorge há de me socorrer! É hoje que pegamos o bandido, prepare-se!
Para a emboscada alinhavada, Ajenor da Silva se valeu dos conhecimentos da época de academia e da experiência, embora o autor bem saiba da robustez das ideias de dona Deusa; mas, segredo de alcova é segredo de alcova. Nem caíra a noite, Ajenor da Silva, Paco, Casemiro da puta que o pariu e mais dois policiais especialmente enviados pelo Departamento Federal partiram da delegacia em carros separados e direções opostas. Mas, espere! Casemiro e Ajenor da Silva juntos em uma operação? Parece que a união se deu justo por manobra psicológica muito bem planejada por dona Deusa, leitora e fã do detetive Sherlock Holmes.
No centro, já se ouvia o tilintar dos talheres no jantar. Na saída do cais do porto, a gastrite de Ajenor da Silva ardia, a barriga de Paco roncava e Casemiro beliscava pipoca doce; aliás, quem inventou tamanha heresia como a pipoca doce? Porém, por estarem em veículos e locais distintos não sabia um da aflição do outro, ou da doçura da pipoca de Casemiro, eca!
Por volta das nove horas, havia cinco carros nas proximidades do cais do porto. Foi quando surgiu de um galpão aquela figura monumental, alta, larga e morena. Dos carros, ninguém o reconheceu. Andou até a ponte e se escorou na balaustrada; contra a vontade do autor, o homem acendeu um cigarro, fumava como se esperasse por alguém, olhar de procura, olhos no relógio de pulso, impaciente, tragadas curtas. Um ator, um ator, que escolha! Ajenor da Silva esquecera-se da gastrite, com a adrenalina fluindo no sangue.
Cansado de esperar quem não ficou de vir, o homem jogou a bituca, também a desobedecer ordem deste autor educado; enfiou as mãos nos bolsos da calça de brim, encolheu um pouco os ombros e partiu em direção à cidade baixa. Um ator, um ator, que escolha! Ajenor da Silva havia programado um ponto crucial; acreditava que o desaparecimento, se ocorresse, seria ali, nem mais nem menos. Batata, batata!
O carro surgiu da esquerda, por trás do silo, com os faróis apagados; alinhou com o homem que andava pela rua escura em direção à cidade, tudo ensaiado, mas os riscos havia, ah, se havia! Fora do previsto, o homem alto e largo não entra no carro; desgraçado! Vou lhe cortar a paga, desgraçado!
A vontade de Casemiro é dar a partida e sair em disparada, em perseguição, mas poderia perder a notícia. Também não pode comprometer o espaço que Ajenor da Silva lhe dera depois de tantos anos de ódio e difamação. Contém-se. Come mais uma pipoca doce. Nem uma fotografia consegue da posição em que está, é claro! Ajenor da Silva lhe dera a pior localização, maldito porco gordo, veado!
O carro adianta, para. O motorista salta e olha em volta. Valha-me Nosso Senhor Jesus Cristo! Meu São Jorge da Capadócia, não é possível, não é possível! Ainda bem que aquele asno Casemiro da puta que o pariu não se precipitou com sua câmera de urubu! Jesus, não é possível, não é possível!
A título de efeito cinematográfico, neste ponto, o autor, metido a besta, sugere um apagar e acender das luzes, como se houvesse passado certo tempo. No entanto, é só um efeito clichê mesmo. Por que não eu?
O motorista se afasta do carro em direção do homem alto e largo.
—Não posso pegá-lo agora, não seria prova de crime, no máximo, sodomia; merda, merda! Os dois conversam e, afinal, andam em direção ao carro, que ator, que ator… merda, merda!
Ajenor da Silva dá a partida e arranca o mais rápido que o fusca consegue. Maldito ator, ator não, marinheiro de bosta, o que você fez?
Paco, Casemiro e os policiais chegam em seguida. O marinheiro contratado por Ajenor da Silva perdeu a cabeça e pôs o motorista para dormir com um soco. Estava indo tão bem, porque essa grosseria? Ajenor da Silva punha a mão ao estômago, a gastrite ardia, o marinheiro parecia feliz com seu feito. Era enorme; Paco precisava olhar para cima para lhe ver os olhos. Era enorme e tinha um sorriso imaculado. Casemiro fotografava o motorista desacordado, e o marinheiro que posava para a câmera. Parem com isso! – gritou Ajenor da Silva. Parem com isso – sua mania de repetição – botem o homem no carro! Paco, ponha as algemas! – ordenava e conduzia a operação para a delegacia. Vamos pelos fundos.
Recebido o combinado, o marinheiro desapareceu.
—Não se esqueça, bico fechado sobre tudo o que se passou aqui ou lhe boto no xadrez! Rapa daqui, rapa daqui! E a gastrite fritava as entranhas do comissário, maldição, maldição, viu.
Dona Deusa não acreditava. Junto com dúzias de rosas vermelhas, chegou o jornal. O comissário Ajenor da Silva dava conta da solução do caso, apontava nomes, descrevia a operação e, ela não acreditava, meu amor, e atribuía a ideia da emboscada à amantíssima esposa dona Deusa da Anunciação da Silva, a senhora Ajenor da Silva figurava em capa do Jornal da Tarde com os louros conferidos pelo repórter de campo, Casemiro da puta que o pariu.
─ Amor meu, joia minha, como poderia não fazê-lo? Foi tua a sugestão. Minha deusa, minha Deusa.
O caso tomou divulgação regional e chegou à capital. A competente esposa do comissário de polícia sugerira o plano que culminou na prisão do suspeito e confesso criminoso. O ilustre luthier Abelardo Grossi foi preso, e seria julgado por sequestro e homicídio. A lista de vítimas causava arrepios. O depoimento do criminoso também.
─ A pele curtida é mais resistente. Após um ou dois dias mergulhada em água, depois de esticada e seca, faz o melhor pandeiro.
Não houve doutor de Direito que o safasse, assim como não houve quem convencesse Ajenor da Silva a pegar o pandeiro novamente, te esconjuro, aprendo a tocar cavaco.
Dan Porto (Rio Grande do Sul, 1983). É escritor. Nesta vida nasceu ruivo, depois o cabelo ficou cinza, mas em compensação a barba se mantém fiel às origens. É Especialista em Tirar meias sem usar as mãos e Mestre em Análise Crítica de Quase Tudo.
Um comentário sobre ldquo;Couro curtido, por Dan Porto”