Cristais sobre o rio
À memória de Caio Fernando Abreu
Sim, lá vai o rio.
Passa espesso, luminoso, profundo. Intenso vai carrega
flores, fitas, votos, velas
Fantasmas ondulam a superfície larga. Quaram
Óculos e vejo
as medusas, turmalinas, passos, tentáculos, o branco azul
que dói, o texto monturo de ontem.
Mas hoje nenhum arbusto flutua
Nada, nenhum fruto apodrecido, nenhuma carne em
agonia
tudo é silêncio
Um sopro acalma:
os ventos de Iansã circundam brisam o rio das capivaras
Respiro o aprazível de tocar com os olhos até as pedras
submersas nesta terra de árvores marinhas – campo,
tempo de deuses sem nome, querubins de muitas línguas,
água de tantas ofélias
Língua de casca áspera no bate-bigorna. [um prego
nervoso degola um halo de luz, diz que é para escrever
tocando o papel devagar, sem chispas, à Lorca.]
mudo de cadeira, procuro o sol mina vermelha de seda
em outro bruto
Osso oco, metáfora resto
[vinde, caminha sobre essas águas e observa, contempla as
baronesas que surgem feito exércitos, as ovelhas brancas, as
romãs passando, boiando como cristais delicados, sol quebradiço,
umbigo esquisito da cidade]
Cinco martírios
A lâmina do tempo me diz outra vez: é um rio – e rápida
também passa. Por isso aguardaremos a chuva e o sol,
aguardaremos aquele que nunca para de passar
O inseto baila sua nudez sobre o vazio do papel
Mergulho
Senhora, ai de mim ninguém viu, minha guia caiu no
espelho do fundo do rio
Jussara Salazar (Curitiba, Brasil) é escritora e artista visual. Publicou Inscritos da casa de Alice [1999], Baobá, poemas de Leticia Volpi, [2002], Natália [2004], Coraurissonoros [Buenos Aires, 2008], Carpideiras [2011] com a Bolsa Funarte, O gato de porcelana, o peixe de cera e as coníferas [2014], Fia [2016] e Corpo de peixe em arabesco [2019]. Tem sua obra publicada em diversas revistas e traduzida para o inglês, o francês, o espanhol e o alemão. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC – São Paulo e Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.