Desaprendi a vida. Mas a teria apre(e)ndido um dia? Talvez naquele estado iluminado de criança, em que a sensação do presente é bruta e inevitável. Quando não existe mente, mas só presença. O presente repetido todos os dias, sem virar futuro ou passado, sem acumular memórias ou esperar vitórias. Um mundo sem futuro porque sem cérebro. Um universo sem resquícios ou sonhos – o próprio sonho vivido, sem a necessidade de sua cópia paralela, que a mente vai criando à medida que se desenvolve. Quanto tempo durou esse idílio? Não sei. Mas foi rápido.

Hoje o mundo exige que o consumamos, consumindo-nos a nós mesmos. Todo ele é apelo ao desgaste e ao acúmulo de estímulos. O mundo alardeia a falsa necessidade de uma ação voltada para sua absorção. Isso em todos os terrenos. Hoje é difícil escrever um texto curto como esse se eu não puser o celular no modo silencioso, porque a todo instante alguém se manifesta no WhatsApp, a todo momento alguém precisa de sua atenção, anseia por ela, por uma resposta, uma “curtida” no Facebook, uma aprovação implícita de suas postagens, como se o gesto representasse o reconhecimento numa realidade onde todos se encontram isolados, invisíveis. Agora não basta seus pensamentos a incomodar a vivência real: o pensamento dos outros atravessam o ar e te bombardeiam sem cessa.

Se você gosta de dramas televisivos, te oferecem de tudo: canais a cabo, NowNetflix e sabe-se lá mais o quê! Um vacilo e não se vive mais, a não ser grudado à TV como um zumbi, consumindo seriado após seriado, terminando um episódio de House of Cards – ou de Breaking Bad – e começando outro, perdendo aquela velha e boa sensação de esperar outra semana para saber o que vai acontecer na trama. A noção de tempo se perde: nós consumimos o tempo na velocidade dos tempos porque, afinal, ainda há aquela série tão comentada, ganhadora de Emmys, e também a volta do cambaleante Game of Thrones, sem contar, é claro, que em fevereiro volta The Walking Dead. O mundo anda muito (mais muiiiito!) mais rápido do que você, e ainda assim tentamos acompanhar seu ritmo alucinante.

Se te dizem que é preciso praticar esportes, vá tentar escolher um! Só na sua academia, o leque é de perturbar a cabeça. E há tantas possibilidades do que você poderia ser, e tamanha é a inconstância da mente, que você termina se transformando num pseudo-marombeiro-boxeador-lutador-de-jiu-jitsu-corredor-praticante-de-yoga-peladeiro-etc-e-tal cuja eficiência em alguma dessas modalidades é altamente suspeita. Esquece-se do ditado segundo o qual não é possível se servir a dois reis. E se você acha que esse pseudo-marombeiro-boxeador-lutador-de-jiu-jitsu-corredor-praticante-de-yoga-peladeiro-etc-e-tal está satisfeito em ser um mero pseudo-marombeiro-boxeador-lutador-de-jiu-jitsu-corredor-praticante-de-yoga-peladeiro-etc-e-tal, aí é que você se engana, porque o mundo tem sempre coisas novas a oferecer, e um pós-moderno não admite lealdade a quaisquer delas.

Há aplicativos de música que parecem um oásis para os amantes da arte (penso especificamente no Spotify), mas que se tornam, pela abrangência do seu conteúdo, motivo de angústia. Não se consegue, ao mesmo tempo, baixar todas as músicas, bandas, gêneros que você aprecia e ainda sentir o prazer tão simples de ouvir uma canção. Você já baixa um álbum pensando na playlist que pode fazer de um outro artista querido. Tempo para escutar as músicas, pra quê? O importante não é possuí-las? A mesma lógica se aplica aos livros, para os que amam Literatura: compra-se mais rápido do que se lê. Às vezes nem se lê e já se compra, como o que parece ser verdadeiro o dito de que o prazer não está na posse, mas na aquisição.

A diversidade de tudo e a sensação de possibilidades infinitas tornam a escolha quase impossível, como diria Schwartz no seu Paradoxo da Escolha. Cada escolha tem seu custo de oportunidade, o que significa dizer que ao optar, também se “desopta”. Escolher A é não escolher B. Nem C, D, Etc. Então o reverso da moeda da escolha é a angústia de não ter vivido uma outra possibilidade que, nos momentos de baixa potência, claro, te aparece como sendo aquela que deveria ter sido escolhida. Não faz sentido? Se você sofre, é porque escolheu errado. Um universo tão variado só pode nos levar à exaustão ou à angústia. Você quase deseja renunciar à escolha para simplificar a vida.

Nem amar é (mais) fácil. Porque amar significa renunciar às pseudo-opções que se apresentam em cada esquina, em cada sorriso, em cada curva feminina. Deixar-se sentir amor é se desconectar do ritmo da modernidade, que te incita a nada segurar, a nada se apegar, a trocar e trocar; que te impele à mudança constante, ao caminhar para frente. Mude tudo como se muda de camisa: mude de amantes, mude de canal, mude de ideias, mude de atividades. É a lógica da propaganda aplicada nos campos mais esdrúxulos da existência. Qualquer coisa hoje é, um segundo depois, obsoleta, como na série interminável de Iphones que se sucedem na velocidade da luz sem que você entenda a razão que motiva o lançamento do próximo. Mas não importa: o ritmo ditado há de ser obedecido e as filas nas lojas da Apple dão a volta no quarteirão nos dia de lançamento.

E claro, a reflexão atenta não se faz presente; ela é contrária à vibe irrefletida que te impulsiona a simplesmente agir na direção e na velocidade da correnteza. Só a doença do corpo te alerta para a incoerência de se correr desse modo desenfreado. O corpo, que tem seus limites, começa a sussurrar aos ouvidos: “você vai pifar”. Já nem se respira direito, a incompreensão do mundo vira dor física, você come demais, você bebe demais. Decidido a ser mais um autômato do rebanho, você corre como se desejasse o precipício, a velha pulsão freudiana de destruição que subjaz aos comportamentos “normais” de nossa época.

Desaprendi. As coisas não eram assim. Eu não precisava aceitar a todo instante os estímulos do mundo. Cada gesto peculiar demandava uma atenção que eu concedia a ele, com todo o sentido que havia em executá-lo. Comer era comer. Comer não era comer vendo filmes ou pensando no que tenho que fazer daqui a pouco. Ler um livro não era ler pensando no livro que ainda não terminei ou ler parando vez ou outra para responder às demandas do WhatsApp. A mente não se imiscuía na percepção da criança porque na criança mente não havia. Ainda. E se você perguntar ao outro por que a pressa, ele não saberá responder. Está pressuposto que a velocidade é predeterminada. Adote-a ou… ou… não se sabe. Dirão que não a adotar é ser um sujeito alheio a seu tempo, um “desconectado”… Nossa, onde é que eu puxo para “desplugar” esse fio?


Caio Lobo, pseudônimo de Bruno Mendonça (Recife, Brasil, 1979). No período de 1994-1998, viveu em Toulouse, na França. Em 2007 ingressou, por concurso público, nos quadros do Ministério Público da União, onde trabalha até hoje. Morou em Brasília do ano de sua posse no serviço público até o final de 2015. Na Capital Federal concluiu Mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente, vive em sua cidade natal. Escreve desde os dezesseis anos: sobretudo romances, ensaios e poemas. Introspectivo, durante muito tempo criava para si, engavetava ou só mostrava suas obras a amigos mais próximos. Em 2012, por incentivo de terceiros, criou o Blog do Francês, onde publica a maioria de seus ensaios. Passou a postar outros gêneros de sua arte em sites como o Bar do Escritor e Escrita. Em 2016 foi convidado a ser colunista da Revista Philos, e publica atualmente parte de sua obra neste periódico literário. Sua experiência com contos é recente, fruto de seu contato com o escritor e colega Roberto Medina, por ocasião da participação em uma de suas Oficinas Literárias. Percebeu rapidamente o quanto a frase de Albert Camus “se quer filosofar, escreva romances” poderia ser transposta para o gênero ao qual se dedicou na composição da coletânea a ser lançada. Ama a literatura que incita o pensar e que o liberta de seus demônios. Leitor compulsivo e romancista, lançou recentemente seu livro Trôpegos Visionários pela editora Kazuá.

Publicado por:Philos

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Um comentário sobre ldquo;Cronos alucinado, por Caio Lobo

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