Na sexta-feira 13 que antecedeu o carnaval desse ano [2015], passei uma tarde com o fotógrafo David Alan Harvey na praia, no Rio de Janeiro. O que segue abaixo são fotos feitas nesse dia e algumas perguntas respondidas por ele.
Você tenta intencionalmente evitar a reprodução de estereótipos e clichês em suas fotos?
Eu também fotografo clichês, só não publico. Estou tentando chegar na essência das pessoas para além do que está visível. Não sei bem como eu faço isso, mas sim, é intencional. A maioria das pessoas que eu fotografo, eu já passei algum tempo conversando com elas. Eu tenho uma ou outra foto aleatória tirada nas ruas no estilo Cartier-Bresson, que era o que eu queria fazer no início, mas aí eu percebi que desfruto de estar com as pessoas. Então eu me proponho a conhecê-las. Eu passo tempo nos mesmos lugares, vejo as mesmas pessoas de novo, várias vezes. Eu as estudo como um ator faria com seu personagem. Atores naturais da vida real. Eles estão em toda parte. Aqui mesmo, agora. Alguém aqui é mais interessante que outro. Algumas pessoas são simplesmente mais expressivas. Não sei porque, só sinto.
A maioria do que vocês gostam de saber sobre as fotografias se encaixam na categoria do inexplicável. E a verdade é que eu nem gosto de pensar demais sobre isso. Eu não fico conversando ou racionalizando o trabalho durante o processo também. Eu vou pra rua. Entro no embalo e vou. É quase como um relacionamento. Eu não sei se vai durar pra sempre, se vai acabar amanhã. Mas enquanto tá rolando eu não questiono. É um processo difícil de explicar. Semelhante à musa de inspiração pra qualquer artista: pintores, escritores, eles sempre tiveram musas. Eu sou como eles.
E nessa busca pela essência você acredita que as pessoas são, no íntimo, parecidas?
Você respondeu à sua própria pergunta. Em qualquer lugar do mundo em que você for, se você tirar fora religião, política, língua, o que sobram são pessoas. Com as mesmas emoções. Por um lado, todos são diferentes, singulares. Mas algumas características da natureza humana são as mesmas, em toda parte. Tirando fora as roupas tradicionais, as religiões e o que mais houver, lá no fundo você encontra as mesmas pessoas que moram no quarteirão onde eu moro. Ou minha família.
Então por que fotografar o diferente? Por que não fotografar o similar?
Não tenho nada contra pessoas como eu, mas sempre me atraí mais pelos descendentes de africanos, desde o meu primeiro projeto longe de casa. E eu aprendi a me relacionar e conviver com os negros bem cedo, com sua cultura e forma de viver. Eu sempre acabava fazendo trabalhos com comunidades indígenas ou negras. Eu me atraio pela música, pelo estilo de vida: fui sendo puxado pra eles.
Como é essa história da musa?
Eu tive duas musas em toda a minha vida, ambas nos últimos quatro anos. Sempre tenho que me sentir apaixonado pra conseguir trabalhar. Houveram outras musas, mas elas não eram necessariamente fotografadas. Eu tive namoradas que não eram musas. Minhas musas, então, costumam ser pessoas com as quais eu não estou me relacionando, não são minhas namoradas. Elas existem pra mim no lugar de criação artística.
Você tem uma predileção por fotografar mulheres?
Eu sempre valorizei a opinião das mulheres, em tudo. Eu preciso delas pra me botarem pra frente, de uma forma ou de outra. E tudo começou com minha mãe. Deve ser por isso que eu gosto de fotografá-las. As pessoas distorcem essa história de um jeito que eu não gosto. E isso ou é porque elas nunca conversaram com as mulheres que eu fotografo ou porque eles nunca presenciaram como eu as fotografo.
E por que você acha que as pessoas confiam em você e te deixam chegar perto?
Acho que nunca fui rejeitado por um grupo político ou social com o qual quis trabalhar. E eu já trabalhei com todo tipo de gente: de direita, de esquerda, de tudo. E dá certo porque eu não julgo ninguém, em primeiro lugar. Eu não tô ali pra julgar ninguém. E, ao mesmo tempo, não sei retratá-los mal. Eu já até tentei fazer sátira, mas não é minha praia. Até queria saber fazer isso melhor, só que agora já é meio tarde demais. No fim, eu deixo todo mundo bem na fita. E as pessoas percebem que eu não tenho motivações políticas ou sociais, que eu não quero que eles façam nada pra mim. Só sou curioso. E documento isso. Uma parte é bem documentário, e outra transborda pro lado artístico, que me interessa muito mais que o jornalístico.
Tanto seu público quanto aqueles que você fotografa parecem ser, majoritariamente, jovens. É isso mesmo?
Minha audiência não tem ninguém da minha idade. E eu não me identifico com as pessoas da minha idade mesmo, então tudo bem. Tenho 70 anos. A galera que trabalha comigo tem vinte e poucos anos. Acho o povo de 45 anos de hoje muito velho. De verdade.
Você prefere os jovens por alguma razão?
É uma relação simbiótica. Os jovens trazem mais energia que os mais velhos. Não tem relação com a idade, mas, com o tempo, muita gente fica cínica, acomodada e se recusa a mudar. Então com os jovens eu me sinto mais eu mesmo. Muito mais do que com as pessoas da minha idade. Eu teria que ficar me explicando o tempo todo, e isso seria exaustivo. Com os mais jovens eu só preciso falar uma vez, eles entendem e estão prontos pra me acompanhar. Porque eles ainda são idealistas! Eu também. Sou completamente idealista. Sou um sonhador.
Mas também sou engenhoso. Uso o lado direito do cérebro pra tudo que é paixão e criatividade, mas também posso virar a chave e ficar tipo: vamos fazer isso aqui acontecer! Eu concretizo. Então eu sou um sonhador no princípio e prático no final. E pra tudo aquilo que eu não sei fazer – que é muita coisa – eu conto com uma equipe de pessoas pra me ajudar. Tenho equipes em diferentes países pra me ajudar.
E o lado direito do cérebro, como opera?
Sou muito intuitivo e festeiro. A festa é parte do trabalho. Só assim eu consigo. E milagres acontecem comigo. Não é muita gente que tem essa sorte que eu tenho. Eu negava a sorte antes. Achava que era tudo fruto de trabalho. Mas agora eu só concordo. Sou sortudo mesmo.
Essa visão romantizada do fotógrafo como observador nômade… você corrobora?
As viagens nunca foram o aspecto da fotografia que me atraía, ao contrário de muita gente. Isso meio que aconteceu. Porque o jeito que eu arrumei de ganhar dinheiro e mandar meus filhos pra universidade foi trabalhando pra National Geographic. E eu sou grato por isso, porque foi ali que eu tive minha verdadeira instrução em fotografia. Mas eu não gosto de viajar; gosto de estar nos lugares.
Maria Bitarello é colaboradora da Philos, escritora, tradutora e jornalista mineira radicada em São Paulo desde 2012. Mestre em Literatura Luso-Brasileira pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), integra a companhia Teatro Oficina Uzyna Uzona. Tem dois livros de crônicas lançados: “Só sei que foi assim” (La petite ferme, 2014) e “O tempo das coisas” (In Media Res, 2018).