No meio da praça, ninguém sabe o poder de Lila. Lila é mulher, Lila usa uma corrente com dois bonequinhos pendurados. Lila acorda cedo todo dia, prepara o café, leva os filhos à escola. Depois vai para o trabalho. Depois volta para casa. Mas, antes de voltar para casa, passa no supermercado e faz umas comprinhas para o jantar. Lava a louça da noite, ajuda os filhos nas lições, confere a roupa lavada. Ajeita a casa, tira as meias jogadas e as peças de Lego do chão. Conversa com as crianças. Tenta. Fala dos deveres. É preciso fazer toda a lição, estudar, se aplicar. Conversa com o marido, sentimento de cafeteira, chinelo com meia. É preciso falar da relação. Estatísticas demonstram que 32% dos casais ainda não dividem as tarefas de casa na cidade de São Paulo. Deu na Cláudia. Ela lia Cláudia. Hoje lê autoajuda, mensagens de whatsapp e vê a capa da Cláudia na banca. No banheiro, no intervalo da descarga. Puxa metros e metros de papel do rolo, derruba o rosto sobre as mãos para abafar o barulho. O exame de tireoide deu alterado. Deve repeti-lo em um mês para ver se há mesmo algum problema. Repete a rotina todos os dias. Nos finais de semana, muda. Entra café da manhã na padaria, almoço com a sogra, visita aos pais, supermercado maior, ir ao shopping fazer os óculos do caçula. Segunda virou redenção. Segunda, às 8h: psicólogo do Tomás antes da reunião com o chefe. A empresa passa pela mais séria crise dos últimos anos, procure saber. A saída anunciada chama-se criatividade. Sente dó dessa palavra, ainda mais com cunho corporativo. Lila viaja a trabalho duas vezes por mês, abre seu laptop e projeta PowerPoints em muitas salas por aí. Lila se viciou no barulho da tampinha da lata de Coca-Cola e na Coca-Cola. Depois da cirurgia bariátrica, é a única coisa que pode beber quando acorda. Versão Diet. Lila está tomando muitos medicamentos e tranquilizantes. Passa no psiquiatra todo mês e no psicólogo toda semana. Hoje se orgulha de uma conta bancária folgada. SUV da moda, uma Paris ano sim, ano não, apartamento com sacada gourmet em bairro nobre paulista. No meio da reunião, sente uma dor estranha, percebe que anda trocando as palavras em reuniões, se esquece fácil da agenda, de combinados com os clientes. Só este ano perdeu dois guarda-chuvas, um par de óculos e três iPhones no táxi. Matriculou-se no pilates, cross-fit fez mal a ela, dava enxaqueca. Dorme 5 horas por noite, picado. Farol vermelho voltando do trabalho, sentiu uma dor estranha nas costas, a ponto de ficar difícil encostar-se ao banco do carro. Estacionou no meio da rua e desceu para ver o que era. De suas costas, havia brotado duas pequenas asas de uma cartilagem flexível, meio amarelada. Sentiu o peso e percebeu que podia controlar o movimento. Acelerou e acabou se afastando do chão, cerca de uns 20 cm – em Bruxelas, há um famoso cientista estudando a aplicação de genes de pássaros em humanos, que resultam no crescimento de articulações e asas em diferentes membros do corpo. A ideia de liberdade sempre perseguiu o homem. Seu corpo voltou ao solo. Na nova tentativa de flanar, conseguiu sair um metro do chão. Animou-se e largou o carro na rua. Largou tanta coisa… Só pegou a bolsa ­– era muito apegada a batons. Saiu voando pela cidade. Conseguiu atravessar a Marginal do Rio Pinheiros sem levar a sujeira. Bateu um cansaço, pousou no Shopping Morumbi. Viu o marido almoçando com a outra. Num voo rasante, entrou pelo restaurante e não deu um pio. Decidiu bicar o mundo.


Cintya Nunes (São Paulo, 1974). Publicitária formada em Comunicações pela Universidade de São Paulo (ECAUSP). Tem na escrita seu ganha-pão e seu ganha-chão.

Publicado por:Philos

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Um comentário sobre ldquo;De dar inveja na Marcela Temer, por Cintya Nunes

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