O júri popular, perfilado em suas cadeiras, aguardava somente o anúncio do veredicto. O advogado de acusação e o promotor trocavam algumas palavras, sempre sorrindo. O público, de um lado, formado por familiares e amigos da vítima, de outro, por familiares do réu, aguardava ansioso o final do cansativo julgamento. Um silêncio súbito tomou conta do local. O homem calvo, de bigode branco, vestido com uma toga preta, assomou pela porta da sala retangular, de paredes brancas e tapetes vermelhos. Devagar, ele sentou-se junto à imponente mesa de mármore negro, que contrastava com sua pele pálida de cera, juntamente com os olhos azuis miúdos, atrás dos óculos fundo de garrafa. – Declaro que, por sete votos a favor e um contra, o réu foi condenado a dezoito anos de prisão, em regime fechado. Assim, o velho juiz bateu o martelo pela última vez, encerrando a sessão. De um lado, suspiros de alívio, de outro, choros e lamentações. A população e a imprensa se dividiram quanto às opiniões. Uma organização de Direitos Humanos ensaiou alguns protestos, acusando os jurados de parcialidade e preconceito racial contra o réu, que era negro e pobre. Tudo em vão. Não havia mais recurso a favor do homem que matara, depois de estuprar, uma adolescente de apenas quinze anos de idade. No outro dia, após o último julgamento, já com a aposentadoria compulsória, o Dr. João Velasquez esvaziou o seu gabinete, limpando as gavetas dos seus poucos pertences. De cima da mesa retangular, ainda com alguns processos que ficara de herança para seu sucessor, retirou a foto da moldura de vidro quebrado, olhando fixamente para o casal de filhos abraçados à mãe. Antes de sair, benzeu-se diante do crucifixo pendurado na parede de um branco impecável, apesar de não ser muito religioso. Sempre fora assim. Até porque, diante de qualquer julgamento, a emoção jamais deve se sobrepujar à razão. Agora de pijama dentro de casa, como um ex-juiz, João Velasquez andava de um lado para o outro entre os móveis coloniais caríssimos do belo apartamento, que uma diarista limpava uma vez por semana. Da biblioteca, com as estantes abarrotadas de livros jurídicos, livros de história da arte e livros de literatura nacional e estrangeira, nada o interessava naquele momento. Na mesa da sala, passou a contemplar uma foto dos dois filhos ainda pequenos de quem, sempre ocupado com processos, ele não acompanhara a infância nem a adolescência. A filha, formada em Direito, depois de se casar com um executivo de uma multinacional de petróleo, que ela mesma ajudara a se livrar de um processo por sonegação de imposto, mudou-se para Dubai. Já o filho, um estroina pervertido, que nunca gostara de estudar, passou a viver nos Estados Unidos à custa de jogatinas e de mulheres, depois que sua mesada fora cortada. Ambos nem chegaram a participar do funeral da mãe, que morrera há três anos. João Velasquez começou a caminhar pelas ruas da cidade. De calça “jeans”, camisa colorida, usando uma boina preta e óculos escuros, tudo para ele parecia desconhecido. Desde o intenso comércio no centro da cidade, entre lojas, camelôs e lixos nas calçadas, até as ruas, com esgoto a céu aberto, das casas amontoadas da favela. O ex-juiz andava ziguezagueando, olhando os rostos e os gestos das pessoas de todas as classes, cores e procedências. Trabalhadores comuns, autônomos, funcionários públicos, desempregados, vendedores ambulantes, homens, mulheres, velhos, crianças, negros, brancos, homossexuais, travestis, prostitutas, pederastas, gigolôs, banguelas, mendigos, viciados em drogas, alcóolatras, pedintes, imigrantes ilegais, ladrões, facínoras, assassinos, contrabandistas, traficantes, agiotas, padres, pastores protestantes, muçulmanos, judeus, pais de santo, ciganos… Todos com seus problemas, gestos e peculiaridades, formando uma babel de sons, vozes e lamentações, na luta pela sobrevivência. Certa hora, muito cansado, João Velasquez parou num bar, sentando-se junto a uma mesa. Bastante ofegante, ele pediu uma água mineral com gás ao garçom. Enquanto bebia devagar, começou a pensar na vida que passara rapidamente. Realmente ele não conhecia nada do mundo ao seu redor. Durante os mais de trinta anos de trabalho, nunca ultrapassara as salas e os corredores do Tribunal de Justiça. Sua vida sempre se constituiu em sair de casa num carro oficial com vidros fumês blindados, dirigido por um motorista, acompanhado de dois seguranças bem armados. Já no prédio do Tribunal, ele subia pelo elevador especial reservado somente às autoridades, entre juízes, promotores e alguns advogados mais influentes. Quase não olhava e nem cumprimentava as pessoas comuns. Seu medo maior, além de algum conluio para assassiná-lo, era o de alguém tentar influenciá-lo em suas sentenças. Subitamente, ainda imerso em seus pensamentos, João Velasquez foi abordado por um menino de apenas oito anos que pedia uma moeda. Do outro lado, dois mendigos discutiam por uma garrafa de cachaça. Ao lado deles, um cachorro esquálido retirava pedaços de pães duros de uma lata de lixo. Mais à frente, uma mulher gorda observava tudo, segurando uma criança no colo, enquanto pedia esmolas aos transeuntes. O ex-juiz tirou do bolso uma cédula, entregando ao menino que agradeceu com o manjado “Deus lhe pague”. O vaivém das pessoas continuava intenso, num movimento nervoso da cidade que parecia não descansar nunca. O Dr. João Velasquez, sempre especialista em ouvir depoimentos e flagrar contradições, passou a perceber a nebulosidade e a realidade do mundo exterior que até então desconhecia, sem conseguir decifrá-lo de uma vez. Lembrou-se de quantas pessoas humildes, ou muitos de seus parentes que agora por ali passavam, foram condenadas injustamente por ele ou por alguns de seus colegas. Enquanto que, do outro lado, formando uma confraria de intocáveis, membros do mundo burguês, do poder administrativo, do poder político, do poder empresarial e do poder financeiro, através de propinas, conchavos e tramoias, se livraram de processos, condenações e prisões por crimes de sonegação, corrupção e desvios de verbas públicas. Que justiça era essa que sempre fora cega e parcial? Saindo dos pensamentos sobre um passado recente, retornando à realidade à sua volta, João Velasquez olhou para os sapatos sujos de terra, que outrora permaneciam sempre limpos e luzidios. Depois de pagar a água, continuou a caminhar, agora mais devagar, pela avenida ainda mais movimentada, entre o barulho ensurdecedor das buzinas de automóveis, sirenes de ambulâncias, ronco de motores, gritos de vendedores ambulantes e latidos de cachorros. Virando em uma rua transversal, entrou numa bela igreja, ato que só fizera em alguns casamentos a que fora convidado ao longo desses anos todos. Ao subir os degraus da escada, deparou-se com um cego que pedia esmolas oferecendo o chapéu, junto a um fiel cachorro vira-latas que o acompanhava. Já no meio da nave central, olhou curioso a quantidade de santos barrocos pendurados nas paredes, sempre rodeados de anjos gorduchos e sorridentes. Ao lado deles Jesus Cristo chorava, exibindo suas chagas. À frente do confessionário, duas mulheres de véus negros na cabeça, rezavam ajoelhadas, concentradas em seus pedidos de promessas e indulgências. Enquanto isso, no altar-mor, um rapaz ainda imberbe, provavelmente o acólito do padre, limpava a poeira de uma Bíblia com as bordas de ouro, juntamente com o cálice de prata. Depois de benzer-se, pois não sabia nenhuma oração por inteiro, o ex-juiz deixou o recinto, no momento em que os sinos dobravam, quebrando o silêncio lúgubre, anunciando a “hora do ângelus”. Ao sair da igreja, em certo momento, tentando atravessar a pista movimentada, João Velasquez quase foi atropelado por um ônibus em alta velocidade. Distraído, nem percebera o semáforo fechado para pedestres. O motorista soltou vários impropérios contra o homem, fazendo sinais obscenos com a mão. Depois do susto, ele entrou em uma lanchonete, pedindo um café. Enquanto bebericava o líquido escuro, sem nenhuma pressa, passou a olhar curioso para um grupo de operários bebendo cerveja, acompanhada com torresmo, que participava de uma discussão acirrada sobre futebol. O dono do estabelecimento bocejava amiúde detrás do balcão. O sol já começava a se esconder atrás dos prédios imponentes e os barracos paupérrimos da periferia. Numa parada de ônibus lotada, depois de pedir informações a um vendedor de doces, João Velasquez pegou um transporte de volta para casa. Do interior do ônibus coletivo, o ex-juiz voltou a admirar tudo que passava por ele. Automóveis cruzando em sentido contrário, trabalhadores voltando para casa depois de mais um dia estafante, crianças abandonadas pedindo esmolas, um grupo de evangélicos protestantes pregando o apocalipse em gritos histéricos, prostitutas e travestis disputando clientes ávidos por alguns momentos de prazer, garis recolhendo o lixo diário, dois policiais correndo atrás de um meliante, bicheiros recolhendo a féria do dia em cada esquina, um grupo de “punks” bebendo vinho barato e cantando músicas sem nexo que saía de um aparelho celular. Tudo ia ficando para trás, juntamente com uma parte da cidade que se preparava para adormecer, dividida entre o lixo e o luxo, a fome e a fartura. Num arranco súbito, o ônibus parou no enorme engarrafamento. Pela janela de vidro aberto, João Velasquez viu um motoqueiro, que fora atropelado por um caminhão, caído no asfalto quente. Alguns moradores de rua já dormiam nos colchões de papelão improvisados, debaixo de marquises das lojas já fechadas. Outros bebiam os últimos goles de cachaça, ladeado por mulheres e crianças que fumavam “crack” num cachimbo improvisado com lata de refrigerante. Os transeuntes desviavam da aparência tísica e assustadora dos párias, que mais lembravam os sobreviventes de guerra. O negror da noite chegou rápido, como um véu de luto cobrindo tudo. Finalmente o motoqueiro foi socorrido e recolhido pelo SAMU, com o trânsito passando a fluir normalmente. O ônibus voltou a sacolejar como se estivesse carregando gado. A silhueta da cidade, quase em silêncio, foi ficando para trás. Já em casa, João Velasquez tomou um banho para relaxar o corpo do longo passeio. Debaixo do chuveiro de água quente, lembrou-se por alguns instantes que era gente e que tinha sentimentos como todas as pessoas. Que podia caminhar livre, misturando-se ao populacho que sempre evitara, seja por medo, por prevenção, ou até por um ignorante preconceito. Ao sair do banheiro, usando um roupão de seda azul, João Velasquez ligou a televisão, mudando várias vezes de canal, sem encontrar nada que o interessasse. Na mesa de centro, pegou uma foto da esposa ainda jovem. Descobriu que a sua única companheira nesses vários anos de processos, julgamentos e tensões, que sempre estivera ao seu lado mesmo nos momentos mais difíceis, agora lhe fazia muita falta. Depois que ela morrera, ele não arranjara mais ninguém que o compreendesse em seus piores momentos de crises, dúvidas, receios e talvez de algumas injustiças praticadas, mesmo que às vezes sem intenção ou má fé. Depois de acender um cigarro, com longas tragadas de deleite, João Velasquez dirigiu-se até a janela. A seguir, abriu as persianas de cor bege. Da luxuosa cobertura de um bairro nobre, ele voltou a contemplar a cidade agora totalmente adormecida. O brilho pálido da lua, juntamente com uma miríade de estrelas, encontrava-se misturado às luzes coloridas que emanavam de todos os lados, com destaque para as guirlandas do natal que já se aproximava. Deitado no amplo sofá, João Velasquez terminou de ler alguns capítulos do romance “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Marquez. Totalmente tomado pela lassidão, como que numa embriaguez, mas também com uma paz interna inexplicável, sem nenhuma dor ou angústia no coração, depois de um longo suspiro, ele dormiu um sono profundo. Seu corpo permaneceu banhado apenas pela luz tênue do abajur de louça chinesa.


Vicente de Melo (Minas Gerais, 1960). Romancista e Contista, foi vencedor do “Prêmio SESC de Contos Machados de Assis”, do SESC-DF, edição 2005. Publicou o romance “A Saga de Um Candango”, em 2013 e as coletâneas “Contos Federais”, em 2007 e Vidas Vazias em 2014.

Publicado por:Philos

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