O escritor patológico o é mesmo antes de descobrir sua vocação para a escrita, antes de idear seu primeiro livro ou texto para publicação. Quais sintomas podem diagnosticar um escritor patológico? Primeiramente, ele é um viajante das ideias. Um mínimo fragmento de tempo, observado ou vivenciado por ele, recebe profundidade, significado e nuances possivelmente não atribuídas por olhares ‘desatentos’ – não me refiro só ao que olha e não vê, mas ao que vê e significa de modo ‘prático’ e ‘realista’ o que viu. Ilustrarei o que digo, descrevendo cenas desde a perspectiva de um escritor patológico, aqui denominado ‘Levi’. Levi conheceu alguém e apaixonou-se ‘perdidamente’. Eis o primeiro sintoma: apaixonar-se pelo desconhecido, a partir de uma imagem somada à própria projeção. Levi anseia por reencontrar o fantástico alguém. Um dia, estando Levi na pequena biblioteca da universidade, o correr das portas de vidro, cujo som emitido é inconfundível, saca-lhe a atenção dedicada às letras vivas no papel. Levi suspende o olhar. Alguém, não qualquer alguém, mas ‘alguém’ acaba de pisar no mesmo espaço quadrado em que se encontra Levi. Por dois inesquecíveis segundos, o olhar de Levi cruza-se com o olhar de ‘alguém’. Seu coração acompanha o ritmo daquela fração de tempo, desacelerando-se consideravelmente para, em seguida, seguir o ritmo ‘normal’ da vida. Eis o segundo sintoma do escritor patológico: sentir que o tempo, o mundo e as relações seguem em ritmo frenético, irracional e surreal para ele. Afinal, o que faz um escritor senão ruminar experiências, pensamentos e emoções? O que é digerido vai ao estômago sensível, volta em refluxo à boca – esse órgão que digere e expressa -, torna a ser mastigado e retorna ao lento sistema digestivo interno. Foi dado o terceiro sintoma: o eterno ruminar. E a eternizada troca de olhares? Levi pensará, como se fosse um personagem do próprio texto, que todo o universo conspirou para que ele estivesse sentado ali, na cadeira posicionada de frente à porta de vidro – que se abre em rolamento -, no exato momento em que ‘alguém’ adentraria a biblioteca. “Ah, alguém, estava escrito!”, pensará Levi. quarto sintoma da patologia: crer que a vida é um livro escrito por alguma entidade provida das mesmas ferramentas que ele.
Por um acaso injusto da vida, a história eternizada do par de segundos em que um par de olhares atraiu-se unindo um par de possíveis amantes, apenas estará escrito nos textos criados por ele, o escritor patológico. E, por algum tipo de equilíbrio vital, a frustração de haver vivido intensamente uma história unilateral justificar-se-á ao ser partilhada com olhos atentos à literatura, mais atentos à vida imaginada por Levi do que às pequenas cenas que o dinâmico palco do mundo pode oferecer. Logo, o quinto dos sintomas: escrever sem o pudor que lhe impede de expor-se. Escrever sem medo de pertencer, por algum julgo próprio ou alheio, ao grupo dos ridicularizados. Confirmado o diagnóstico, a prescrição será a escrita como antídoto, sem contraindicação ou qualquer efeito colateral.


Emanuela Rodrigues (Goiás, 1983). Escritora, poetisa e artista visual. É autora autopublicada da obra ‘Metamorphose de Sophia’ dentre outras. Escreve temas diversos, entre os quais regionalismo e realismo fantástico. É a artista responsável pelas fotografias desta edição. Autora do livro Pelo andar da carruagem (2017).

Publicado por:Philos

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