No dia em que eu nasci, minha mãe pagou por ele noventa réis. Sua pelagem malhada e seu porte médio faziam dele o mais bonito da vizinhança. Com muito jeito, ele se aproximou de mim e eu tomei conta do coração dele. Parecíamos entender cada desejo um do outro.
Nos meus primeiros passos, eu fazia a alegria dos meus pais e a empolgação do meu cãozinho. Cresci na companhia dele. Aliás, nós nos sabíamos crescendo um no outro e nos querendo sempre. Ele não foi somente o meu maior amigo. Foi também o meu companheiro inseparável. Eu o desejava só para mim. Assim também ele se comportava. Durante o dia, nas horas de estudos, nos perigos, nas travessuras, nas surras, lá estava ele, ao meu lado.
Atendia por “Pitoco”, nome que lhe fora dado por conta do seu rabo que cortaram assim que nascera. Judiação!
Sua rotina diária era intensa. Além de caçar o frango que ia pra panela e furtar guloseimas na loja de meu pai, punha-se em alerta nos cuidados com as crianças (éramos onze) e anunciava a chegada de estranhos. Na volta da escola, ele vinha nos receber no portão dos fundos de casa. Sua faceirice era tanta que não se contentava em abanar o quase rabo, nem em lamber nossas mãos. Latia e saltava alto, rolando conosco por terra muitas vezes.
Ao cair da tarde, na área coberta junto à porta da cozinha, ele se acomodava, montando guarda, fosse qual fosse a temperatura da noite. Não lhe era permitido entrar em casa.

Aos dez anos, viajamos para conhecer os Saltos das Sete Quedas em Guaíra – PR. Mais de cem quilômetros rodados em estrada de chão, nivelada por patrolas. Foi a única vez que ele viajou com a família, dado o mal estar que sentira. E nem ali apareceu na foto oficial. Lamento por não ter nenhum retrato dele. À época, fotografia era coisa rara. Artigo de luxo em passeios ou comemorações.

E o dia em que completei quinze anos, comemorado apenas com um bolo simples, em casa? Pela felicidade estampada em seu focinho, parecia que era ele quem estava em festa, e não eu. Afinal, havia poucos meses, ele também fizera quinze anos.
Naquela tarde, sentei ao lado dele e falei dos meus sonhos de menina, dos meus planos e anseios. Pela cara que ele fazia, parecia entender cada palavra, cada suspiro meu, cada vontade escondida. Eu estava no primor da idade, e ele no declínio da vida, perdendo os pelos, a coragem e o brilho natural. Dividi com ele o meu pedaço de bolo.

Passados mais alguns meses, ele decaiu de vez. Apesar de quase cego, os seus olhos, tomados de cansaço, continuavam me seguindo, enquanto a cabeça pesava sobre suas patas e o toquinho de rabo se movia ao ouvir a minha voz, ou com a minha simples presença. Dele eu cobrava ainda a energia e o vigor que um dia esbanjara. Mas ele já não conseguia me alcançar. Não tinha mais forças pra correr. Seu caminhar, de garboso, passou a ser arrastado e dolorido. Falseava-lhe uma ou outra perna quando se erguia.
Aos poucos, passei a negligenciá-lo, a deixá-lo de lado, a me esquecer dele e do quão importante fora para mim e para minha família. Jamais imaginei que isso o deixaria tão sentido. Passei a palpar o peito dele todos os dias, apenas para sabê-lo ainda vivo. Embora melindrado, seu coração disparava com o toque. Ele achava que eu o estava acarinhando como quando jovem. Ledo engano!
As suas feições sofridas me pareciam dizer que eu continuava sendo o seu refúgio. Que o seu fim estava próximo e gostaria de estar comigo até o último momento, sem reservas. Eu me fazia de desentendida, e me afastei dele de vez. Havia decidido que não o queria mais pra mim.
Visivelmente abatido, ele continuava pelas noites junto à porta da cozinha. Cada dia mais frágil, mais prostrado e mais vulnerável, por conta da velhice, somada ao meu desapego. Via-o não mais como um prazer, mas como um estorvo, um velho debilitado, sem nenhuma utilidade. Até as marcas de suas patas na calçada passaram a me incomodar. Eu percebia, porém, que o respeito e a admiração que ele tinha por mim permaneciam inalterados.
Eu procurava não pensar nos anos de extrema fidelidade que a mim dispensara. Nem nas provas de amor intenso. Muito menos nas inúmeras alegrias que me facultara. Ou no dia em que, por ter ouvido gritos sufocados sob a sacaria de grãos que desmoronara sobre mim e duas irmãs, com os dentes fincados na barra da calça de um empregado do armazém de papai, ele nos trouxe o socorro. Não relevei nem mesmo o atropelamento que ele sofrera, por nos salvar das rodas de um caminhão, e que o deixara gemendo dias a fio, com ferimentos expostos. Assistência médica naquele tempo era privilégio não estendido aos animais.
A única coisa que nunca lhe deixei faltar foram duas porções diárias de comida. E foi na sua última refeição que confirmei a minha real ingratidão para com ele. Notei-o se engasgando com um pedaço de osso e nem ao menos tentei socorrê-lo. Empurrei-o, com a vassoura, para detrás de casa, pois me fora difícil vê-lo morrendo, com os olhos marejados de desespero e a boca espumando. Sufocado.
Com ajuda das minhas irmãs e meu irmão, ajeitei o corpo dele sobre uma tábua. Com direito a cortejo fúnebre, flores e cantos sacros, nós o deitamos em cova profunda na parte alta do quintal.
A imagem da agonia do meu leal parceiro, com o olhar vidrado, implorando a minha ajuda, ainda hoje me incomoda. Sabe Deus em quantos pedaços eu parti o coração dele…
Por que tão tarde fui reconhecer o valor do meu cãozinho? Por que não dei ouvidos a seus suplícios e lamentos?
Tento compensar a minha culpa, zelando pelos animais que tenho, depois de ensinar a meus filhos e netos a bem tratá-los, pelo quanto são importantes para nós e para nossa saúde, em especial para a natureza.
Sei que vou levar comigo para sempre, no fundo do peito, a lembrança do meu mais afetuoso amigo. E tenho plena certeza de que ele me levou dentro do coração, para que nele eu fique bem guardada.
Eternamente.


Lucrecia Welter (Paraná, 1953). Escritora multipremiada e presidente da Academia de Letras de Toledo, Paraná. É Revisora de textos da Revista Philos e Curadora de Literatura lusófona da mesma Revista. Tem diversos livros lançados e publicações em coletâneas poéticas.

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