baby
apesar do medo eu percebi sua calça cáqui – que cor era aquela? – a nuca a silhueta. te desejei no ponto de ônibus esses lugares passageiros estão cheios de gente como você ou é coisa minha isso mas há sempre alguém voluptuosamente interessante passando ligeiro com calça cáqui com canelas de fora eu vi sua meia rosa eu estava te olhando apesar do medo você sabe você olhou pra trás pra ver ou desver sei que o nosso olhar cruzou apesar do medo de cruzar olhos nesses dias você sabe a gente parou pra se olhar ou isso é coisa da minha cabeça mas era a sua cabeça girando e me procurando dentro do ônibus te achei primeiro até a gente ter retina rente nessa distância que balança motorista, calma ninguém tá com pressa aqui todo mundo percebeu que tem um calor rolando olha de novo pra eu ver que não é coisa da minha cabeça da minha carência tô saudoso de toque é verdade por isso a paranoia mas apesar do medo e graças às deusas os homens que estavam atrás de mim acabaram de descer ainda há tempo? espero que não seja seu ponto porque apesar do medo eu aqueci no transporte público fiquei vermelho quente será que eu tô pensando direito? tenho medo agora que há fascismo escancarado nas esquinas eu queria saber você está se protegendo? porque flertar com você é gostoso mesmo sem palavra nenhuma assim na distância do busão balançando mas eu não consigo me desligar do fato de que pessoas como nós estão morrendo e eu nem te conheço eu só te achei lindo e se agora eu estivesse sentado ao teu lado interessado ofegante eu não te daria um beijo eu perguntaria você está olhando pros lados? olha pra trás do ônibus eu tô aqui e é importante olhar pros lados pra frente e pra trás até pra cima e pra baixo porque não se sabe quem estará de calça cáqui ou quem tem faca agora apesar do medo é imenso te encontrar e propor essa cama na cara de todos agora somos dois aventurados em plena consolação a gente sorriu um pro outro nesse segundo nessa segunda de medo e isso não é coisa da minha cabeça porque tá todo mundo com medo e foi você que virou a sua cabeça e levantou a sua sobrancelha e sorriu de volta quando eu sorri horrivelmente com medo eu queria poder sorrir solto contigo entre papos gemidos misturas escrevo num pedaço de papel um pequeno retalho um rasgo do meu caderno como você um rasgo da minha manhã pego esse papel apesar do medo e lutando pra não achar que isso é coisa da minha cabeça avoada chapada mas eu estou de cara vivendo isso eu juro peguei o papel anotei meu número escrevi meu nome desenhei uma flor nem contei as pétalas para saber se bem me quer se mal me quer dobrei esse pedaço exageradamente conferi 2 vezes e segurando na ponta dos dedos como se tivesse prestes a te entregar esse míssil essa muda essa mensagem com nada escrito somente como me encontrar minhas diretrizes revisadas meu jardim dobrado apesar do medo eu te passei o papel quando seu ponto chegou num aperto de mão agora perto demais não precisava tanto te entreguei o papel e disse cuidado na rua eu disse cuidado na rua eu só podia dizer cuidado na rua enquanto você guardava no bolso meu bilhete meu verbo de eco meu nome
cuidado.
sem título
não é a pátria
morta
o motivo do meu luto, antes
precisei chorar
muitas outras coisas não
foi essa morte
a que enfrentei quando
militares foram eleitos
com sangue nas mãos
foi em mamãe
que pensei que
agradeci estar morta
para não ver a pátria
morrendo
para não me ver
violentado
eu não consigo chorar agora
ouvindo os
gritos de horror pelas janelas as
armas empunhadas nos discursos
eu não consigo chorar
essa fenda na memória do país
esse aneurisma madrigal
não é a morte dessa pátria mãe gentil
o motivo do meu marasmo
o motivo do meu medo
antes precisei
chorar
meu ninho vazio
minha histerectomia
não é de agora
que venho enfrentando
lutas lutos
feridas sangramentos cirurgias
não é de agora
que choro
antes
precisei chorar
outras dores
não é a pátria morta
o motivo do meu luto
João Innecco (1993) é poeta cantador. Membro do Coletivo Transformação e do coletivo Poetas do Tietê. É co-editor da Antologia Trans (Invisíveis Produções, 2017), autor das zines independentes Fumaça (2017) e Tinto (2018). Em 2018, participou do Mix Literário e da Mostra Textão no Museu da Diversidade Sexual (São Paulo).