Justina está deitada em sua cama. dorme de boca aberta e a respiração trava levemente em sua garganta promovendo um ruído tísico. seus cabelos loiros e pálidos cobrem seu rosto ossudo. na mesa de cabeceira, nossos cigarros e copos se amontoam, e é isso o que temos para compartilhar, além da fornicação. despejo no lixo as cinzas e as bitucas. levo os copos até o banheiro e jogo um pouco de água. uma da manhã. tenho de chegar às duas e meia. fecho a janela para a garoa não entrar no quarto, e puxo o lençol até o pescoço atraente de Justina. visto o meu casaco e vou para a rua. depois de um bom tempo cerceado pela névoa tabagista, baforo vividamente o ar gélido da madrugada, enquanto os pelos do braço se eriçam por debaixo das roupas. a lua ilumina o céu por detrás das nuvens, tornando-as trapos cinzentos, e entre os trapos, uma quietude lôbrega indiferente. as poças, iluminadas pelos postes, refletem e distorcem as construções e os meus pés. há uma beleza nisso. no caminho de casa, encontro o bar que mais frequento. está fechando. entro com pressa. peço conhaque com vinho branco, sem gelo. o dono do bar leva as pedras de volta para o congelador. deixo cinco reais no balcão, desvio de uma quantidade razoável de vômito no chão e vou para a rua. acendo um cigarro. fumo com tranquilidade. ainda tenho tempo e o mundo dorme. ele ainda dorme. antes de o bar fechar por completo, pego uma última dose e vou para casa. abro a porta. entro no quarto onde durmo. a mobília é a mesma de dezessete anos atrás, quando eu era casado. o parto teve complicações. exsanguinação. entro na suíte e lavo o rosto. uma e meia da manhã. saio do quarto e abro a porta ao lado. ele dorme profundamente, como uma criança. alívio. fecho a porta com cuidado. na sala, ligo o rádio e preparo uma bebida. do outro lado da rua, extensos latidos se misturam a uma briga matrimonial. é uma norma, eles sempre encontram algum motivo para se acusarem no meio da madrugada. vivem de bicos e cocaína. sempre que os encontro, são simpáticos. não tenho o que reclamar. em poucos minutos devem parar. música conhecida. depois, o cachorro ainda continua a latir por um tempo, sobretudo quando chove. o rádio está velho. a voz do programa se oculta atrás do chiado. duas da manhã. tenho que me preparar. vou até meu quarto, abro a primeira gaveta da estante de roupas e pego as três seringas. analgésico e dilatador de brônquios. a terceira eu nunca soube. o médico não disse. sento no vaso, fumo um cigarro e acabo a bebida. duas e vinte e sete. o som começa ameno, uma respiração ruidosa e custosa que se alastra pelas paredes da casa. em seguida, um contínuo gemido sonâmbulo que desencadeia um choro nascituro atonal. duas e meia. as paredes, estáticas. coceira. fricciono a unha do dedo indicador direito na região do pescoço. o lamento dodecafônico gutural rebate pelos cantos e se alastra como ar. os latidos, junto dos outros ruídos da noite, sucumbem. lavo mais uma vez o rosto. abro a porta do quarto ao lado, com zelo, e escuto o som ainda mais alto. de olhos abertos, encolhido no canto da cama, ele dorme com o lençol na altura da boca. acaricio seus poucos cabelos oleosos. chamo-o pelo nome, tranquilizando-o. a respiração diminui o ritmo. está na hora, está na hora, eu digo. aos poucos, ele começa a piscar. o choro cessa, restando a custosa respiração. no fundo das dobras e pústulas de sua face, vejo suas pupilas cintilarem no escuro. com o canto do lençol, limpo um rastro de saliva que sai pelos seus lábios inferiores rachados. passo meu braço direito por detrás do seu pescoço arredondado e o ajeito entre os tumores subcutâneos. com o outro braço, enlaço as pernas miúdas na altura dos joelhos calcificados. com certa dificuldade, carrego o corpo pelo corredor. tudo bem, tenho experiência. conheço os atalhos do corpo. dobramos o corredor e entramos na sala. sinto o carpete velho na sola do pé. melhor, o azulejo estava frio. o abajur, ao lado do sofá, é a única fonte de iluminação. pronto, chegamos, eu digo. ele geme um ronco esofágico denotando desconforto. ao começar a ajeitar o seu corpo no sofá, suas fossas nasais expostas e seus bulbos olfativos se aproximam de meu ouvido. é quando escuto o sibilo que vem de dentro do seu organismo, o seu autêntico ruído. depois de algumas tentativas, lutando contra o peso do corpo, consigo ajeitá-lo da melhor maneira possível. as costas estão apoiadas no encosto do sofá, e os neoplasmas hipodérmicos, as pústulas e os ossos pontiagudos devidamente protegidos pelas almofadas. com o queixo apoiado na clavícula protuberante, a grande cabeça assimétrica pende para baixo, engasgando brandamente o seu som gutural em saliva. acaricio seus cabelos. desligo o rádio. ligo a televisão em um documentário: predadores na savana. ele gosta. arrasto a poltrona para perto do sofá. a luz do abajur se apodera diretamente de toda a extensão de sua face, mesclando as profundezas ósseas e os inchaços em uma desbotada massa irregular. abaixo o lençol até a altura do umbigo. entre as crostas de pele seca da barriga, aplico as vacinas. em poucos segundos, o gemido para. restam apenas o sibilo e os felinos do continente africano. a morfina fez efeito. vou até a cozinha e esquento uma sopa no micro-ondas. dois minutos e meio. provo a temperatura. volto para a poltrona. prendo um pano em volta de seu pescoço. passo a colher pela fenda desdentada e despejo o caldo em sua língua. seus olhos brilham, e sua mão direita, em um impulso, aperta o lençol. o polegar acaricia o pano e suas texturas. os lábios se movimentam milímetros e formam uma espécie de sorriso. bebeu todo o caldo. é preciso se alimentar, eu digo. sinto uma brisa gelada entrar na casa. subo o lençol até seu pescoço. ele não desvia os olhos da televisão. preparo uma bebida para mim e acendo um cigarro. no segundo copo, seus olhos miúdos desviam-se da savana e fitam a bebida. escuto um rouquejar. você quer um gole? talvez um pouco não faça mal. dou um gole. a mão direita aperta o lençol com mais afinco. sua expressão se torna mais plácida. isso é uma das coisas que faço para me distrair, eu digo. ele rouqueja e, com dificuldade, aproxima a mão esquerda do copo. ajudo-o a dar mais um gole. o que achou?, pergunto. volto para a minha poltrona. a respiração não parece mais um fardo e o corpo aparenta relaxado. o lençol é tomado por um líquido viscoso. vômito. troco o lençol e limpo seu queixo glabro e úmido. alguns minutos e ele dorme. eu também. dois dias depois, no meu aniversário, meu filho morre.


Santiago Segundo (São Paulo, São Paulo, 1993). Autor do romance Estômago (Editora Kazuá, 2017).


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Publicado por:Philos

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