Maria fora encontrada, perdida nas ruas da capital do estado goiano, por um médico da cidade vizinha, Anápolis. Ela dizia ter vindo de Balsas, município do Maranhão. Sua família a teria trazido de avião para tratamento mental. Não se incomodaram em buscá-la de volta. Não se sabe se Maria fugira ou se a despejaram do hospital em que havia sido internada. O médico, que tinha um coração grande, construiu um quartinho no fundo de seu vasto quintal para acolher Maria, que acabou por tornar-se agregada da família. E ela participou ativamente do processo de integração, adotando o médico como pai. Maria teria dez irmãos, então. O ‘pai’, já em idade avançada, faleceu. Maria seria órfã a partir daí. Mas não. A senhora escolheu um dos filhos do médico para ocupar o posto vago, e, de certo modo, ele aceitou o título. Dia a dia, Maria comia em quantas das casas de seus ‘irmãos’ lhe coincidisse ‘chegar na hora certa’. Parte desses a tinham em grande consideração. Chamavam-na ‘Maria Cutia’. Dentre atividades rotineiras, Maria acumulava água em latas, juntava papelão, costurava seus próprios vestidos e renovava a aparência. Para tal, improvisava os próprios métodos estéticos, alcançando o resultado desejado. Se queria estar loira, coloria os cabelos com açafrão. Às vezes, ficava ruiva usando cera vermelha de chão. Aí, já aproveitava para pintar as gastas e trincadas unhas. E quando decidia apresentar-se morena, pintava as madeixas grisalhas com carvão. Maria enrolava o próprio fumo e seguia a disciplina de fumá-lo ao sossego de tarde caindo. Contava longos causos e ria um riso aberto e sem dentes. Nas festas de família, Maria ria, dançava em giros e celebrava com um cantarolado “Iba”. Se alguém perguntasse como estava, ela logo respondia com os olhos de inocência: “Tô boa e gorda”. E, embora fosse ‘louca’, resplandecia sempre em seus discursos um feixe de lucidez: “O mal tá em mim!”, dizia. Maria lidava bem com os ‘sobrinhos’, mas rilhava com qualquer que bulisse em seu terreiro, o qual varria contemplativa, por vezes, altas horas da noite. Uma vez juntadas as folhas secas caídas, Maria fazia uma grande fogueira. Amante do fogo e da água, a senhora de estatura média e forte magreza trazia consigo o costume de apanhar o segundo elemento no rio. É provável que tenha vivenciado a seca ou a sua iminência. E, quando agentes de saúde inspecionavam suas latas, surgia o caos. Maria perdia a diplomacia e agredia com a força de um louco os que, supostamente, ameaçavam sua sobrevivência. Ocorre que Maria tomava banho de água ‘enlatada’, iluminada pela lua e protegida pelas bananeiras do quintal. Ela era a Eva que não mordeu a maçã. O tempo passou e o antigo hospital do ‘pai’ tornou-se ruína, assim como sua bela e grande casa. O quartinho de Maria volveu-se, a cada dia, mais abarrotado de quinquilharia. Os ‘irmãos’ aceitaram uma boa proposta de venda para o vasto quintal onde ela habitava. Logo, foi providenciada sua acomodação em um asilo. Apenas em ausência de Maria foi possível conhecer o reservado interior do quartinho, antes cerrado com retalhos de pano trançados e presos por dois pregos batidos na madeira da porta. Quem o viu, constatou que Maria era uma acumuladora. Os ‘pertences’ não deixavam espaço para ela, sequer, deitar-se à noite. ‘Dormia Maria sentada?’. Expulsa de seu paraíso, Maria viveu um bocadinho mais. Irritava-se com a ‘véia’, sua companheira de quarto, e desabafava a cada visita que recebia. Do que morreu Maria? De velhice, nostalgia, inadequação? O que trazia e o que levou Maria Cutia em seu coração? Uma trouxa de roupa, o personagem de uma nordestina louca, uma lata d’água, um metro de chita florida, uma ‘bassora de páia’, a própria solidão.
Emanuela Rodrigues (Anápolis, Goiás, 1983). Estudou Moda, Serviço Social, publicou livro, formou-se professora de línguas estrangeiras e, atualmente, se joga na encenação. Morre e vive pela arte. Mora no México.