Troveja lá fora. Aqui, do lado de dentro, sinto prazer em ouvir o ruído dos trovões. Este som, acompanhado do frescor que anuncia chuva, remete-me ao conforto e à segurança que eu sentia quando chovia, em minha infância: Aquela sensação, jamais revivida, de que o lar é uma fortaleza e os pais são eternamente jovens e grandes. Até que súbita tristeza me acometa ao dar-me conta de que, lá fora, alguém não tem onde refugiar-se da mesma chuva que me conforta. Eu me cubro e penso nas gotas frias tocando o corpo de um vagabundo, de algum cachorro sem dono, ou de um menino de rua.
Um fio de água cai, gota a gota, sobre uma superfície ruidosa. Não tarda para que o som intercalado se torne constante. O ruído não me soa incômodo. Ao contrário, me dá a dimensão da força física que um composto fluido adquire quando concentrado. É a metáfora viva sobre a força da união. O cheiro de terra molhada desperta em mim a nostalgia de tempos que sequer reconheço haver vivido, tempos em que a natureza era o meio ambientado.
Contemplo as gotas que escorrem pelo vidro da janela. Parecem lágrimas de algum ser invisível, habitante de fora e de dentro de mim. As folhas de uma planta próxima estremecem-se ao menor peso de água caindo. Um pássaro pousa sobre o muro, pia algum comentário sobre o tempo, sacode o corpo intentando secar as penas impermeáveis, e segue voo. Pergunto-me se ele não terá frio. E as borboletas, onde se escondem?
A paisagem acinzentada parece compor-se bem com meu estado de espírito. Sim, minha aura é cinza. Fecho os olhos e ouço o som da vida a reciclar-se. Especulo sobre o cheiro da chuva chorada nos campos de concentração nazista. Imagino a chuva ácida mergulhando nas areias de algum deserto. Penso em enxurradas, enchentes, rios transbordantes, bueiros entupidos e na seca do nordeste. Por que a chuva cai desigual, meu Deus? Quando criança, eu dizia que deveria chover todos os dias, mas só à hora de dormir. Hoje sei que toque de recolher é inapropriado à democracia.
Deitada sob a coberta, desejo que a chuva caia até o fim do dia, seguido de noite, seguido de outro dia. Mas, ao fim da tarde, quando o sol já se prepara para despedir-se, a chuva se cala. Pelas grades do portão vejo crianças rabiscando sóis infantis no chão. São sóis sorridentes. As nuvens densas parecem comover-se com a inocência dos pequeninos. Sobre a fina cortina esfumaçada, um pálido brilho arredondado promete voltar resplandecente em momento certo, mas indeterminado. Ofendo-me com aquela presença que, falsamente, me corta a apreciada solidão.
À noite, estrelas têm o brilho ofuscado pelo céu ressaqueado. Cadê a chuva aconchegante que o tempo me prometeu? Veio com hora certa para acabar. Nem tudo o que é previsível, é aceitável. Calço um par de sapatos fechados, agarro o guarda-chuvas e saio a caminhar. Eu gosto do cheiro de chuva, mas tenho medo de me molhar.
Emanuela Rodrigues (Goiás, 1983). Escritora, poetisa e artista visual. É autora autopublicada da obra ‘Metamorphose de Sophia’ dentre outras. Escreve temas diversos, entre os quais regionalismo e realismo fantástico. Foi a responsável pela direção de arte da Philos #5 do ano 1.