– O senhor policial não entende…
Havia entre eles um balcão com um livro de memórias em cima.
– … minha vida tornou-se um inferno. Outro dia foi a mesma coisa, eu hesitava diante da estante de livros, na livraria, não sabia se levava O inominável, do Beckett, ou Bestiário, do Cortázar, e logo depois… pou! Encontrava-me num bar, uma obra sobre dieta vegetariana na minha frente, uma meia de leite pela metade e o finalzinho de uma torta alemã toda espatifada num pires rosa. Procurei nos bolsos alguma nota, algo que me provasse a aquisição daquele livro, e nada. Sei que o senhor não acredita em mim, parece muito conveniente já que agora, bem, aí está, mais um que eu não sei de onde vem, nem gosto de biografias de ditadores, mas acontece assim.
– Outra vez foi diferente. Eu ia atravessar a rua na faixa de pedestres, um carro me viu e não quis parar. Emputeci-me, comecei a insultar o motorista que me encarava com olhos arregalados, juntaram-se pessoas a me observar com ar estranho, até que alguns insinuaram que eu é quem estava errado. Disseram que eu havia gritado a pelo menos três metros de distância da faixa, ora, não posso ter me enganado assim, a faixa estava ali, embaixo dos meus olhos, tenho certeza, meu pé prestes a descer do meio-fio quando veio o automóvel, mas não quis insistir – os ânimos se exaltavam – e saí de fininho, como se tudo aquilo não fosse comigo.
– E agora isso! Lembro de estar na livraria, zanzando pelos corredores, perdido como sempre em meio aos livros, depositando neles essa esperança sem nome que nasce das frustrações diárias da existência, o senhor me entende. Vez por outra folheava algo, Kafka sempre, os calhamaços chamativos do Dostoiévski, aquele olhar de passagem sobre as frases, o prazer da textura, o senhor oficial sabe muito bem, ou talvez não. Mas dessa vez foi pior porque havia aquela miúda, a delicadeza em pessoa, logo ali, ao meu lado, passando vagarosamente as páginas de um livro de imagens, enquanto fazia comentários em espanhol na direção de um rapaz mais novo, penso que um sobrinho, não sei. O fato é que para mim nada há de mais hipnotizante, entenda, do que uma bela mulher – era o caso – a folhear um livro enquanto fornece explicações que a gente sequer escuta porque o fascínio vem dessa comunhão divina entre beleza, voz e papeis roçando a imaginação.
– Como o senhor…
Percebeu que era uma senhora.
– … como a senhora deve imaginar, caí novamente na armadilha e eis-me aqui, tentando explicar o inexplicável, estes lapsos constantes que me aniquilam do mundo, breves apagões a devorar o tempo (o meu tempo!) sem pedir licença. E não vou dizer que é ruim porque o tempo, bem, melhor que o tempo se vá logo, e estas pequenas mortes provocam, na ressurreição que lhes advém, um torpor até agradável, um tanto inebriante e anestésico, não consigo explicar. Não fosse o fato de ter que dar satisfações porque carrego livros comigo, que não sei de onde vieram, e que podem muito bem ter caído na minha posse por vias ilícitas – diga-se inconscientemente ilícitas, obrigado, Sigmund –, eu nem reclamaria, mas no fim, parece que tenho que reiniciar todo este percurso narrativo que, curioso, não se apaga de mim, ele, o discurso. Lembro-me muito bem da sua organização textual, embora nunca me recorde dos rostos dos interlocutores para quem o proferi, talvez milhares ou milhões de vezes, sabe-se lá!
– É irritante e amedrontador. A senhora policial já sentiu algo parecido? Ao sair de uma loja, sobretudo livrarias, como pode notar, tenho que pôr as mãos nos bolsos do sobretudo ou, se tiver uma mochila, não me arrisco a passar pelos detectores antes de abri-la num canto e ver se não estou a carregar o que não me pertence. Não sou ladrão, apesar das aparências e apesar deste objeto aí (nem gosto de memórias, já o disse, quanto mais de ditadores). Mas quando me vejo novamente na saída, novamente com a mochila, recomeça tudo, tenho que ir abrir novamente a mochila, e nem sei como consigo voltar para casa porque o ciclo é sem saída, se houvesse lógica no mundo o normal é que ficasse eternamente a abrir a mochila, a me dirigir à saída, a ter medo de mim mesmo e de minhas ações involuntárias, a voltar a um canto, a abrir a mochila, etc. É como eu disse, minha vida tornou-se um inferno.
– Senhor – disse a rapariga com muita gentileza –, preciso saber qual o comboio que vai tomar. Peço desculpas, mas não entendo o que está a dizer.
Ele olhou ao redor. Estava numa estação ferroviária.
– Eu cheguei a lhe dizer para que cidade ia?
– Claro, mas não me respondeu se vai no intercidades que sai em quinze minutos ou se espera pelo alfapendular das dezesseis horas.
Coçou a cabeça num gesto de dúvida. Pela janela do trem passavam velozmente árvores, postes, vinhedos. E era de manhã. O sol apenas se levantava por trás das colinas. Sentia-se bem, anestesiado. Na mesa diante de si havia um livro. Não entendeu aquele título, embora fosse uma obra do Proust. Parecia estar escrita em alemão.
Ele não entendia alemão.


Bruno Macêdo Mendonça (Recife, 1979). Doutorando em Línguas Modernas na Universidade de Coimbra, Portugal. Colunista da Revista Philos, onde assinou com o pseudônimo Caio Lobo. Autor da coletânea de contos “Trôpegos visionários” e do romance “Liberdade”, lançamentos da Editora Kazuá. Premiado nos concursos SFX de Literatura e José Cândido de Carvalho, edições de 2016.

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