Era madrugada fria. A chuva escorria fina e interminável. A cidade dormia cansada e doente.
O som provocado pelo salto do coturno de couro preto de André explodia-se em choque com as ruas desertas e repletas de poças d´água. Um passo em falso, e tudo seria revelado…
Chovia sem parar. Vez ou outra, um carro cortava a longa avenida. Enquanto isso, o rapaz miúdo, vestindo tons pastéis, caminhava a passos largos e confusos e indecisos. Na boca, aquele gosto amargo da decepção, aquele maldito gosto de uma descoberta dolorosa e sufocante e dilacerante. Soluçava baixinho, como quem estivesse cometendo um crime, e fosse isso um perigo muito grande. Parou por um instante, olhou para o céu imenso acima de si. Se pudesse fazer carícias e afagos e confortar suas feridas que agora rasgavam a camada de ozônio…
– O – zô- nio… – O rapaz miúdo, de barba delineada, balbuciava sem parar. Dentro dele, alguma coisa mudara, movera-se, tornando aquele momento um verdadeiro tormento. E, quando a vida torna-se insuportável, temos o direito de enfiar bem fundo o dedo na garganta, e mandarmos para longe qualquer possibilidade que não nos permita seguir em frente.
– Ca – ma – da! – Continuou André.
Um carro passou mais perto, e um transeunte apressado passou por ele, deixando vestígios de vida naquela cidade. Mas, subitamente, o mesmo transeunte, que momentos antes passara pelo rapaz miúdo, virou-se e estacionou seu corpo entre um poste e uma bifurcação da longa avenida.
Por um momento, entreolharam-se e tudo parecia ganhar um sentido, uma nova perspectiva. A chuva amansara. O silêncio era angustiante. A respiração de ambos inquietara-se: até a menor criatura apercebia-se daquele pequeno assassinato: aquele encontro inevitável consigo mesmo.
Nada acontecia. Nenhum passo, nenhuma palavra. Ambos permaneciam ali, parados no tempo da contemplação.
Um passo em falso, e tudo seria revelado… – E queriam?
A chuva cessara completamente. A madrugada já era profunda e aguardava os primeiros raios solares iluminarem a terra, para que ela, escura, pudesse cavar novos abismos, escurecer novos horizontes.
De repente, o aceno… E todo aquele impasse pareceu perecer, esvaziar. O inevitável, enfim, aconteceu. O rapaz miúdo pigarreou e esboçou um terno sorriso: “era um bom começo…” – pensou.
Na contramão, vinha o transeunte apressado, tão próximo, e era assim que se movia: gracioso e conquistador, desbravando aquela madrugada fria, chuvosa, deserta, com inexatidão e com certo desespero agradável. Agora tão perto que, enfim, pude decifrar sua fisionomia: altivo, sombrio, olhar penetrante, a cara linda e fria.
– Me dá um cigarro?! – Um deles pediu.
– Filtro branco… Pode ser? – Respondeu o outro.
Era o início da descoberta daquilo que, horas antes, rompera o coração de ambos e trazia aquele gosto amargo na boca; a bile pedindo socorro… Um passo em falso, e tudo seria revelado.
– Claro! E fogo… Você tem?
O riso cínico e contido de ambos. A respiração inflando o peito cada vez mais. Usavam gestos pequenos para coisas grandes demais. Um deles estendeu o cigarro para o outro, e tirou do bolso profundo da calça o isqueiro barato. Aproximou-se e suspendeu, por um breve momento, a chama do isqueiro, e acendeu o cigarro de filtro branco preso nos lábios do outro. Um vento soprou mais forte e apagou a chama. A chuva dava indícios de seu retorno. E foi então que, sem nada dizerem, as mãos daqueles dois encontraram-se…, tudo tão rápido e confuso e estranho.
“O choque. A válvula. O espasmo… Eu não sei se a vida é pouca ou demais para mim.” – Pessoa, em minha mente, boca e ouvidos.
A chuva retornara mansa e incansável. As mãos, agora afastadas, escondiam-se nos bolsos da calça de ambos, buscando conforto, calor e o aniquilamento de qualquer possibilidade de um novo encontro. O outro acendeu um cigarro para si.
– Que faz sozinho nessa madrugada fria, perambulando por aí? Indagou um deles, e soprou a fumaça.
O outro, antes de responder, riu aquele risinho cínico e contido, deixando transparecer alguns dentes sadios e brancos. Tirou a tímida mão do bolso e, suspenso no ar, respondeu: – Faço a mesma pergunta pra você. – Desviou o olhar para um cartaz pregado ao poste, e soprou a fumaça.
“O Universo só pode caber dentro dos corações das pessoas…”– Ondjaki, num dos cartões-postais que recebi, após tê-lo conhecido em Luanda.
– Estou perdido… Perdido!
Tragou fundo. Quase tossiu. A mão inquieta na boca, buscando uma espécie de afago, compreensão. Jogou a bituca no chão e a esmagou com o pé esquerdo.
Mais uma vez, aquele silêncio horripilante. Entreolharam-se profundamente e qualquer piscar de olhos levaria para longe toda a delícia daquele encontro… Um passo em falso, e tudo seria revelado…
– Você tem mais um cigarro? – Pediu ainda mais desesperado.
– Tenho. Estendendo o cigarro e entregando-o. Mais uma vez, o click seco e certeiro do isqueiro barato. A pequena chama iluminando brevemente o rosto dos dois.
Um carro buzinou fugidio. Um cão latiu ao longe. Em volta, naquela avenida, onde ambos permaneciam imóveis há muito tempo, não havia nada além das inúmeras poças d’ águas desencadeadas pela chuva que caía.
Caía… Caía…
– Perdido? Em que sentido? O diálogo retomado após uma longa pausa.
Era preciso um esforço muito grande para manter uma linha tênue naquele encontro brutal, para que ambos levassem, para bem longe, aquele gosto amargo da boca, que, horas antes, era apenas uma inquietação, uma angústia sutil. E, como numa coreografia ensaiada incansavelmente, entreolharam-se e sopraram a fumaça. O riso cínico e, cada vez mais, menos contido.
A madrugada avançava no horizonte.
– Em todos os sentidos… Sabe, cara? – Respondeu um pouco mais calmo.
– Sei, sei, cara! – Olhou de relance e visitou, com o olhar, o resto do corpo do outro.
– Então, talvez seja esta a nossa sina: este encontro patético e inevitável aqui nesta avenida vazia e alagada… E, enquanto fumamos este cigarro de merda e nos olhamos como dois cães famintos, tentamos de alguma maneira mandar para muito longe este gosto amargo das nossas bocas… Não é isso, cara?
O estalo. Alguma coisa avançara e chegava perto demais. Era preciso cautela. Novamente o silêncio. Olhares mútuos. O confronto e a certeza cada vez maior de que, em breve, aconteceria aquele pequeno assassinato: o encontro inevitável comigo mesmo.
Encharcados pela chuva que insistia em cair, tremiam de frio, pavor, alarmados pela doce esperança de: sobreviverem, talvez! Um deles chegou ainda mais perto. A mínima distância dissipara-se. Nada mais podia ser evitado.
– Sei lá!… Da vida, só sei que ela é absurdamente linda! Mas, ela me dói tanto, tanto, bicho! Saca?
A mão dele no ombro do outro. O rebento. O quebrantar de dois corpos que agora se moviam na mesma imensidão. Estavam unidos e exalavam bebidas alcoólicas baratas, sobras do fracasso, cartas fora do baralho… Sozinhos e perdidos e confusos, tentavam decifrar o mundo, com ideias pequenas, o coração patético.
– Puutz!… – Exclamou o outro, tocado pela resposta que recebera há pouco.
Aquilo doeu. Penetrou e rasgou qualquer coisa fria que estava dentro dele. Ele não podia continuar ileso e bem assim, assim mesmo, o choro explodiu em meio àquela avenida longa, fria, alagada.
Chorou um choro de vinte e oito anos… Um choro de alívio e gratidão.
Meio sem jeito, o outro aperta ainda mais a sua mão no ombro do outro. O instante em que toda a verdade e o gosto amargo da boca de ambos seriam revelados…
Colados, abraçaram-se simultaneamente. A cabeça de um, no peito largo do outro. Os olhos dos dois, em chamas, quebrantavam-se em lágrimas até então contidas.
A madrugada dava seus últimos suspiros. O dia já pedia passagem. A chuva persistia fina, fria, incansável. A avenida ainda mais longa, deserta, alagada.
“E depois de todo o meu esforço, finalmente estou de volta ao início.” – o amor em mim, em nós, naquela avenida. Naquela chuva. Naquele encontro inevitável daqueles Dois.
O tempo passando, a cidade dormindo e os dois ali, unidos num abraço do tamanho do mundo. Choravam cúmplices, almas-reflexo, perplexos pela surpresa que a vida reservara para ambos… Aquilo era mais que piedade e compaixão, aquilo… Aquilo era…
– Amor! – Disseram ao mesmo tempo. O abraço esmagador, revelando a fragilidade do peito de ambos.
A mão de um, na barba do outro. A carícia abrindo espaço, possibilitando o próximo passo: as bocas unidas. Os olhos fechados. As mãos ardentes permeando e desbravando as nossas costas.
“Minha velha Alma, cria Alma nova.” – Baleiro, acertando-me em cheio.
Madrugada finda. Os primeiros raios solares clareavam o que estava adormecido, escurecido. A chuva ainda, fina. Alguns carros espaçados cortavam a avenida de vez em quando.
Depois do beijo, tudo fora revelado… “A solidão é meu cigarro. Não sei de nada e não sou de ninguém.” – Baleiro, mais uma vez.
– Me dá mais um cigarro!… O último! Depois eu vou embora – Sentenciou o pedinte.
A mão no bolso. O maço quase vazio. A entrega. O click seco e certeiro do isqueiro barato. Os cigarros na boca de ambos, o roçar daquelas mãos. A pequena chama, suspensa no ar, iluminando a cara daqueles homens.
Por fim, o riso cínico e estridente varava a cidade, agora amanhecida.
Um passo em falso, e tudo seria revelado…
Pela última vez, entreolharam-se profundamente e sopraram a fumaça.
– E aquele gosto amargo na boca… Se foi? Um deles.
Longa pausa… Um passo em falso, e tudo seria revelado.
– Estamos perdidos… Não há nada que possamos fazer. Vai, siga a sua vida, que eu sigo a minha! Porque o tempo passa, e eu estou exatamente como deveria estar: silencioso e brando. – Revelou o outro.
E sozinhos e perdidos e confusos, avançaram pela longa avenida que, aos poucos, ganhava movimento. Caminhavam em direções opostas e abriam lentamente os braços, olhando para o céu. A chuva fina ensopando ainda mais aqueles corpos. Os olhos bem fechados, a boca tremendamente aberta exibindo um sorriso de vinte e oito anos…
Um sorriso de alívio e gratidão…
Alívio e gratidão!


André Kaires (Tatuí, 1985). Um apanhador de sonhos e de loucas poesias.

Publicado por:Philos

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