Ela não queria olhar para o chão. Mas você há de tropeçar, diziam alguns, e como fazer para livrar seus joelhos dos hematomas, perguntavam outros, e como garantir a integridade do dedo mindinho, diziam outros em linguagem de criança. Mas ela estava decidida, não se preocupava em olhar para o chão. Não importavam os alertas, as preocupações e os tombos que de fato aconteciam vez ou outra. Seu olhar não estava atento às pedras e às quinas.
Ela queria olhar para o alto. É que as estrelas eram tão mais bonitas do que as pedras! Ela entendia que alguns se fascinassem com as pedras, pois elas têm sua beleza de geometria imprevisível, e cores nem tanto. Além disso, alguém precisava entender a relação entre as pedras e os pontapés, entre o chão e o tropeço, entre a quina e o chute certeiro de canto de pé. Mas esse alguém não seria ela. Ela queria entender o que mantinha a estrela naquele lugar, como é que ela não desgrudava da imensidão azul-escuro. Ela queria entender os pontos brilhantes, queria saber para que serviam, já que com as pedras era mais fácil: serviam para chutar, oras.
Um dia, alguém fê-la descer. Mas as estrelas não servem para nada, foi o que disseram. Você deveria se preocupar com a pedra que a separa das coisas daqui, e não com as estrelas, que não enchem barriga. As pedras também não, mas é preciso abstrair da pedra, para entendê-la, a menina e a pedra e a estrela. Se você quiser entender as pedras, dar-lhe-ão apoio, dar-lhe-ão dinheiro, reconhecerão você. Se você continuar a olhar para cima, entenderão seu olhar como desfocado, sua cabeça como desconexa, vão achá-la birutinha, birutinha. Estrelas existem apenas, mas as pedras dão ótimas teorias.
E ela amuou. Passou a não olhar mais para cima, tentando se apaixonar pelas pedras e por tudo que elas proporcionavam. Logo davam tapinhas em seus ombros pelo belo estudo sobre pedras, felicitavam-na pela utilidade de suas conclusões. Há dinheiro, se você pesquisar como tirar pedras do caminho, disseram uns de terno e gravata e edital na mão. Logo ela tentava achar formas de tirar pedras, desviar das pedras, moldar pedras, esculpir pedras, carregar pedras como souvenir e vender pelo dobro do preço. Ela era entendida de pedra, sua mãe dizia com emoção.
Um dia, sem querer, ela olhou pro céu. É que acontece, sabe, você se distrai e logo, logo sua cabeça tá fazendo o que não deve, admirando o brilho das estrelas. E aí, pela primeira vez, ela olhou para ela mesma. E ela viu o quanto as estrelas estavam nela, naquilo que ela era, naquilo que ela pensava. Ela estava tentando achar as estrelas no chão, nas pedras, no concreto da vida. Teve uma ideia brilhante, realizou-se, achou-se naquele momento da vida em que o caminho muda de roupa (e ela o preferia sem pedras, sempre foi assim). Agora ela olha para cada um que cruza seu caminho, olha mesmo, bem no olho, e pergunta sobre a estrela que cada um largou para trás. Ainda não sabe se dá dinheiro, no fundo são as pedras que lhe dão condição de achar a estrela do mundo de que todo mundo se esqueceu. Mas de noitinha, aahhh, ela e as estrelas são uma só visão, um só plano de vida, um dia ela saberá quantas tem lá, e quantas há aqui, dentro dela, no meio do caminho, entre o caminho da teoria e das pedras.
Pâmela Côrtes (São Paulo na teoria, Minas Gerais na prática, 1989), mestre e doutoranda em Direito. Atriz e dramaturga. Já publicou por aqui algumas vezes.
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