Eu andava por entre os carros estacionados na calçada e o fluxo contrário de pedestres, na tentativa de chegar ao ponto de ônibus a poucos metros. A caminhada não era confortável, como muita coisa nesta vida. Eu não me importava com os empurrões ou com os buracos no asfalto, muito menos com o calor insuportável que derretia a pouca maquiagem que me permitia usar. Na verdade, nada nesta vida consumia meus pensamentos ou me fazia suspirar à beira da cama, sobre o aconchegante travesseiro.
Tudo era muito simples. Eu acordava às 6 da manhã, dava comida para o Hércules, meu pequeno pinscher, tomava meu café quente com pão amanteigado, escovava os dentes rapidamente e saía. Não existiam atritos familiares, porque morava sozinha, e muito menos questionamentos existenciais, porque tudo me era muito confortável.
Mas voltemos ao ponto de ônibus. Eu estava, como de costume, observando o vai e vem matinal das pernas urbanas apressadas e dedos esquizofrênicos sobre telas cada vez maiores, quando notei algo incomum. Uma gota d’água caiu no chão, ao meu lado, no momento em que eu observava o sapato superengraxado de um senhor sentado, à espera da condução.
Assustada, eu olhei para o céu e lamentei não ter trazido o guarda-chuva, afinal o jornal indicava um calor de 39º na cidade. Estranho, o céu estava azul, sem sinal algum de nuvens carregadas ou casamentos de viúvas. De onde caíra aquela gota?
Meus olhos logo trataram de olhar tudo à volta. Foi quando eu a vi. Ela estava em pé, ao meu lado, de vestido branco e cabelos loiros cacheados. Uma menina que devia ter a minha idade, mas seu semblante era muito mais inofensivo. Notei que muitos homens a admiravam e muitas mulheres a olhavam torto, como quem expressasse grande aflição por não ser tão magra, ou tão alta, ou tão loira, ou tão, ou tão, ou tão…. Mas, até então, nada de diferente de tantas outras.
A pergunta, porém, permanecia no ar, me rodeando. Eu me esforcei para olhar em seus olhos, uma ação difícil, pois ela permanecia com a cabeça abaixada, como quem admira as formigas “transitantes”.
Eu a olhei.
Eu olhei todos que a viam.
Cheguei à seguinte conclusão: ninguém realmente a olhava. Todos viam suas pernas, seus braços, seus cabelos, mas ninguém os seus olhos. Ironia da cidade urbana, nós vemos, mas não olhamos. Nós reparamos, mas não nos importamos.
Eu me importei.
Mas o que deveria fazer? Seguir com a minha rotina? Afinal, o que me importava se a lágrima a tinha como dona? Entrei no ônibus lotado, em meio a tantos questionamentos, que há muito tempo não tinha, lutando a batalha diária contra a lei da física e sua afirmação de que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço. Penso em um dia desmentir Newton com o exemplo da superlotação nos transportes públicos. Mas, enfim, estou a me perder novamente.
Escolhi, um pouco forçada, o meu pequeno espaço. Reparava a vida fora da janela meio aberta, quando senti algo gelado tocar meu joelho. Virei-me assustada, podia ser um inseto, na melhor das opções. Mas não! Novamente vi a gota d’água, solitária, escorregar até se evaporar.
Ao meu lado, espremida entre a minha velha mochila e a multidão, estava a menina. Seu rosto, agora levantado, fixado em uma imagem no além, como quem entrara em um mundo único e particular.
Ali, solitária em meio à massa, em um momento quase que congelado no tempo, vi os olhos mais lindos, porém mais tristes, com que cruzara nesta minha jornada. Eles me prendiam. Nenhum barulho a minha volta, nenhuma parada brusca, nenhum empurrão desmedido me fazia parar de me afogar naquela imensidão.
Quanto mais minha alma adentrava a dela, mais tristeza meu coração sentia. Era como se, por um breve e eterno momento, nossas vibrações se conectassem e nenhuma barreira me impedisse de sentir o que somente a ela cabia. Em um breve sussurro, perdi a minha identidade e queria apenas ser ela.
Outra lágrima.
Agora a gota, como já tinha alcançado seu objetivo de chamar minha atenção, se limitava ao queixo escorregar. Era brilhosa e transparente, tão pura e delicada. Em um impulso imperceptível, levei minhas mãos ao rosto dela. Meus dedos ganhavam vida própria, além, voz própria, me dizendo que seria sacrilégio deixar tamanha elegância se esvanecer, misturar-se ao ar e desaparecer.
Mas . . .
Mas. . .
Mas meus dedos tocaram em terra seca…
Cadê a lágrima?
A menina me olhou, assustada. Seus olhos, antes tão aéreos e transcendentes, fitavam-me em profundidade e concentração. Eu não entendia nada. Onde fora parar a lágrima?
Eu e ela nos olhávamos, em silêncio e perplexidade. Eu, por perder a lágrima, ela por nunca tê-la tido.
-Me desculpa! – Sussurrei constrangida, tratando logo de abaixar o olhar.
No momento em que estava pronta para ir-me, senti sua mão tocar meu ombro, pedindo mais alguns minutos do meu tempo.
-Com licença! – ela disse em tom suave. – Você pode ver? Realmente pode ver?
Aquelas palavras soavam mais inacreditáveis do que tudo até então. Não tive coragem de encarar aqueles olhos novamente, mantendo-me entretida com a velocidade dos carros que mais pareciam sons do que imagens sob a velha janela do ônibus.
-A lágrima? Sim. Eu a vi e não queria deixá-la ir assim… Tão sem significado.
Em meio à lotação diária, muitas mãos me esbarravam, muitos corpos me prensavam, e até pontapés me atingiam. Nenhum era pessoal. Mas, as mãos da menina eu senti. Seus dedos finos encostavam suavemente sobre os meus, soldando e pedindo permissão.
Ela queria me tocar?
Ela quer segurar minhas mãos?
Eu não sabia o que sentir, como deveria reagir, muito menos o que estava acontecendo. -Porque você está sentindo tanto aperto no peito? Assim fica difícil de respirar – eu disse.
Eu podia sentir o que se passava com ela. Não podia ouvir seus pensamentos, mas seus sentimentos.
Em meio a toda dor que ela emanava, eu pude sentir um feixe de luz nascer. Era confuso demais entender o que ela sentia, o que eu sentia. Mas, mesmo na incerteza, algo me dizia que eu lhe fazia bem.
Era eu a luz.
Meus olhos não podiam mais resistir ao chamado dos dela, que permaneciam sobre mim.
Quando me rendi à tentação de navegar, como pirata ilegal, em seu azul celeste, um lindo sorriso brilhou sobre a pele delicada.
Eu era, definitivamente, a luz.
Como pôr em palavras esse sentimento? Só quem teve a experiência de ser a razão do sorriso alheio sabe o valor desse momento.
-Pode sentir o que eu sinto?
Concordei.
-Você realmente me enxerga, não é mesmo?
-Isso não é algo tão difícil assim. Muitos te enxergam, hoje mesmo notei.
Sentia um calor dominar todo meu rosto e orelha. Por que eu estava corando?
-Não. Eles apenas reparam na menina bonita de vestido branco. Você foi a única que olhou meus olhos marejados. A única a olhar as lágrimas que meus olhos jamais ousaram derramar. Lágrimas que nem eu mesma tinha coragem de olhar.
As pessoas que estavam coladas em nós nada entendiam daquela conversa. Os cochichos começaram a nascer lentamente e, quanto mais fazíamos silêncio e nos olhávamos, mais eles cresciam e aumentavam em volume.
-Sua lágrima me chamou. Era como se eu pudesse ouvi-la me pedindo para não deixá-la apenas evaporar. O que eu devo fazer, então? O que ela realmente está me pedindo? – Não era a minha intenção, mas minhas palavras soaram como suplício.
Ela silenciou.
Novamente a feição triste tomou todo seu rosto.
O sorriso deu lugar à boca cerrada.
Seus dedos não mais faziam sombras aos meus.
-Nada! – Ela respondeu. Em meio a um sorriso forçado me disse. – Foi suficiente.
Não era suficiente. Pelo menos, não para mim. Eu não sentia a necessidade de salvá-la, muito menos de protegê-la. Muito pelo contrário, meu coração batia acelerado, disparando em meu peito, querendo criar pernas e se embrenhar dentro dela. A sua aflição eu não mais sentia, pois agora tinha as minhas próprias.
Todo o meu conforto parecia que nunca mais existiria. A simplicidade de minha rotina cheirava como morte. A minha vida correu sobre meus olhos, como um filme de Tim Burton, uma mistura sinistra entre comédia e horror.
Ela estava cada vez mais longe. Intocável. Inalcançável.
Pela primeira vez, em toda a minha vida, eu senti medo.
Não podia fazer nada.
Ela se foi.
Ela não podia ir … Mas se foi.
Eu realmente não queria… Mas se foi.
Assim, voltei meu olhar às pernas apressadas que corriam nas calçadas. “É melhor me conformar”, pensei, tentando me convencer.
Os cochichos pararam. Ninguém mais se importava comigo. Voltei a ser apenas mais uma, comum. “Porque me importei tanto? Agora eu fico e eles se vão. A minha alma se parte e, para eles, apenas mais um excêntrico causo urbano”.
“O que é isso?”
Pensei!
Novamente, um toque entre tantos, pude diferenciar. Não tive coragem de olhar. A dor ainda era muito forte, meu esforço muito grande para voltar à normalidade.
Braços, que não os meus, envolveram-me pelas costas, em um abraço apertado e inquebrantável.
Um corpo quente e macio, que não o meu, envolvia meu simples existir.
Paz.
A dor se fora como brisa no verão.
A angústia deu lugar, como mágica, ao pulsar mais honesto de minha alma.
Eu simplesmente sentia uma enorme vontade de sorrir.
-Você vem? – Ela balbuciou em meu ouvido.
Eu fui!


Rita Amaral (Rio de Janeiro, 1990). Historiadora, escritora (Leve Mente Humana, 2015) e poeta. Ganhadora do 3º lugar no 24º Concurso de Poesia e Prosa da Academia de Letras de São João da Boa Vista, SP (2016).

Publicado por:Philos

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