a literatura periódica como transcurso gestativo da linguagem

Antes da publicação de Primeiras estórias, alguns contos de Guimarães Rosa já apareciam no jornal O Globo. É o caso de “Famigerado”, história que narra o encontro entre um jagunço, de nome Damázio, e um médico do sertão. O primeiro, tendo sido chamado “famigerado” por um moço do governo, requer ao segundo, pessoa letrada do arraial, que traduza a desconhecida palavra para a “linguagem em-dia-de-semana”, explicitando se consistia em ofensa ou “farsância”. Reconhecendo, em seu interlocutor, um homem perigosíssimo (“feroz de estórias léguas, com dezenas de carregadas mortes”), o doutor replica que se tratava de expressão neutra, sinônimo de “importante”, “notável”. Em timbre hostil, Damázio exige que o médico garanta sua palavra (“pra a paz das mães, mão na Escritura”), o qual responde: “Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado – bem famigerado, o mais que pudesse!…”.
Célebre a observação de Antonio Candido, a propósito da obra de Guimarães Rosa, de que a dimensão temática é menos importante do que a dimensão linguística, uma vez que a palavra adquire uma espécie de transcendência, criando uma outra realidade, praticamente valendo por si mesma, isto é, excedendo o conteúdo da narrativa e seu substrato telúrico. É antiga nossa compreensão da força do verbo; tomando por referência a tradição literária ocidental, remete ao Gênesis e seus primeiros episódios: o relato da criação, o poder atribuído a Adão para nomear os animais, a confusão das línguas. O fato de até hoje muito se evocar o primeiro livro de Moisés parece revelar um imperativo, uma ansiedade da influência, como definiu Harold Bloom, que, por um lado, corresponde à força que uma obra anterior exerce sobre um autor posterior na composição de sua própria obra, e, por outro lado, denota uma leitura subversiva da obra prévia pelos pósteros.
De certo modo, parece existir na literatura um propósito universal, uma finalidade coletiva. Afinal, um livro – ou, antes, um texto – nunca existe sozinho: está sempre dialogando com outros textos e sendo lido e “deslido” por outros leitores. Como ensina o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, a linguagem tem como traço essencial a ausência de um eu; pertence à esfera do “nós”. A literatura, compreendida como linguagem, tem uma função de preservação e transmissão consistente no diálogo, caracterizado como um processo de superação do abismo existente entre o mundo que nos é familiar e os significados desconhecidos que nos esforçamos para compreender. No conto de Guimarães, é na fronteira entre a familiaridade e o desconhecimento do significado de “famigerado” que se constroem simbolicamente as diversas identidades – a de Damázio, a do médico-narrador e a do próprio leitor –, amarradas à razão de uma trama de consciências individuais que não resistiriam isolada ou acidentalmente.

Sem encontro, não há reconhecimento; não há literatura, tão só textos escritos de si para si, autofagias solitárias curtidas em água-de-colônia. Perscrutar o outro, o “nós”, é, a todo tempo, a dívida primeira do escritor.

O escritor se acha dentro de um arranjo correlato. Sua existência enquanto “eu” só tem significância na medida em que é compreendido como parte de um “nós”. Sem pretensão academicista ou rotuladora, a esse tensionamento entre indivíduo e coletividade podemos chamar reconhecimento. O outro, na literatura, é condição de possibilidade para reconhecermo-nos como criadores de arte – a partir do diálogo, da troca, da prática, mesmo que transcorrendo entre o sonho e a vigília, como no conto “O outro”, do nosso Jorge Luis Borges. Sem encontro, não há reconhecimento; não há literatura, tão só textos escritos de si para si, autofagias solitárias curtidas em água-de-colônia. Perscrutar o outro, o “nós”, é, a todo tempo, a dívida primeira do escritor.
E quem somos nós, afinal? Malgrado ignoremos essa questão em nosso “sacode às seis horas da manhã”, vivemos sob um signo imanente: somos latino-americanos. Poderíamos correr nossas canetas e bater nossas teclas sob o fog londrino, mas quis o curso das coisas que respirássemos a atmosfera de Macondo, com suas mazelas e encantamentos tão seus. Há um legado artístico e cultural que precisa ser mantido e, sem dúvida, renovado, o que é inconcebível sem a construção de diálogo entre os grupos produtores de arte, ainda mais em tempos de hegemonia linguística anglófona – foi certeiro o escritor mexicano Carlos Fuentes quando disse que só as culturas poderão fazer renascer a diversidade. E, entre as diversidades de nossa atmosfera, particularmente a brasileira, está um sufoco histórico primário, do qual parecem decorrer os demais problemas: nossa desastrosa formação cultural. De um lado, a maioria da população nem ao menos chega a ter qualquer coisa próxima de uma formação; privada de recursos materiais elementares, versos e frases são utopia onde não há nem arroz. De outro lado, entre aqueles que têm acesso à educação e cultura, prevalece a ideia de que a literatura é uma atividade pedante própria de uns poucos intelectuais, não raro motivo de remoque. Escrever, no Brasil e na América Latina, é lidar necessariamente com esses embaraços; é enfrentar, antes de tudo, a pergunta: “O que fazer para popularizar a literatura?”.
Não é outra a lavra sobre a qual deitam raízes as revistas literárias; na verdade, antes parece ter sido da percepção inconsciente desse dilema que surgiram suas primeiras iniciativas. Dos ensaios de fuga do formato do livro para a consolidação de novos modelos, houve uma sazão valorativa, com as publicações periódicas avocando uma incumbência fundante: democratizar o acesso, entre leitores e escritores, aumentando e diversificando os espaços de produção literária, a fim de promover o reconhecimento entre autores a partir do diálogo autêntico. E, subjacente a essa responsabilidade, uma outra: o cuidado para não emular justamente as idênticas estratégias mercadológicas tradicionais – se é que ainda é possível considerá-las exclusividade do mercado –, tendentes à composição de grupos autorreferentes: as famigeradas “panelinhas”.
Por isso, não basta repisar a ideia de democratização. É preciso enraizá-la de modo autêntico, o que não se colhe meramente oportunizando a publicação de qualquer material, ainda mais em razão de interesses particulares. Explorar outras possibilidades de produção não nos exime do dever de exercício crítico próprio do diálogo. Impende às revistas literárias publicar materiais que passem por crivos prévia e objetivamente – o mais objetivo que pudesse!… – estabelecidos, o que não significa, contudo, deixar de contestá-los; muito pelo contrário, faz parte dessa tarefa problematizar os próprios critérios de qualidade literária, não raro deferentes a cânones arcaicos, eivados de senões estruturais excludentes. Daí a importância da ascensão de revistas segmentadas, como, por exemplo, publicações que recebem originais de autores negros e lgbts. Trata-se de novos crivos, fundamentais para rearranjar os alicerces da produção artística e equilibrar as pulsões criativas, revolvendo na linguagem a pluralidade de seu “nós”. Hipocrisia seria elevarmos a prumo a bandeira da preservação e renovação do patrimônio cultural e linguístico pospondo esses enfrentamentos; e desfaçatez entrevê-los como um concurso de extremos – deve haver vida inteligente além do binarismo. Se a literatura periódica for de fato capaz de preservar e renovar nossa cultura, não será elegendo entre abrir mão do crivo ou então assumi-lo como fórmula estanque. Do fiat lux às produções literárias contemporâneas, somente o diálogo constante para germinar o verbo, a palavra criadora que amanha e cultiva nossa identidade.

O que fazer para popularizar a literatura?

No transcurso dessa gestação, podemos recorrer às palavras de Raduan Nassar, palavras sem artifícios no enunciado, sem escoras forjadas, uma verdadeira linguagem de em-dia-de-semana: “se outros hão de colher do que semeamos hoje, estamos colhendo por outro lado do que semearam antes de nós”. Talvez seja esse o primeiro passo para diminuir o abismo entre Damázios e doutores.


André Balbo (São Paulo, 1991). Escritor e editor da Revista Lavoura. Autor dos livros de contos Eu queria que este livro tivesse orelhas (Oito e meio, 2018) e Estórias autênticas – importunâncias do engenho alheio (Patuá, 2017). É colaborador da Liberoamérica – Revista iberoamericana de literatura, cultura e igualdad.

Publicado por:Philos

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