No prólogo de O outro, o mesmo, Borges conta um episódio em que foi repreendido por um leitor. Tal leitor o acusa de sempre escrever duas vezes a mesma coisa. O autor responde: o leitor-acusador é tão binário quanto ele, Borges. Só que, no caso do leitor, a primeira versão é de outro. A resposta, se ilustrada com a própria literatura borgiana, ganha mais sentido:
Em Os Teólogos, dois heresiarcas se confrontam e se refutam durante toda as suas vidas. Na morte, descobrem que, estranhamente, compunham uma secreta unidade. Em A morte e a bússola, detetive e assassino se enveredam por labirintos, antecipam e pressupõe os seus pensamentos, se cruzam e também dividem a secreta existência binária, tão cara para o autor.
Para o argentino, seu outro – seu duplo – chamava-se Borges. Sua literatura é, muitas vezes, o testamento destes encontros: um relato do jogo dos reflexos, a oposição e a justaposição destes dois arquétipos dúplices. E qual a explicação para a existência do outro?
O primeiro argumento é racional, filosófico. Em Uma nova refutação do tempo, valeu-se do idealismo hegeliano e dos paradoxos do tempo para contradizer a empírica noção de tempo como conhecemos. Em Outras inquisições, diz que todos os homens nascem platônicos ou aristotélicos. Em outra oportunidade, menciona que não há discussão que já não tenha sido travada por Platão e Aristóteles. Somos apenas simulacros, arremedos a reproduzir eternamente as discussões de duas grandes matrizes. Empiristas ou racionalistas, platônicos ou aristotélicos, estamos sempre a avançar por um campo, a escolher um lado de um jogo já traçado, de um xadrez já jogado por outros tantos duplos – um argumento que, por si só, mostra toda a fé do escritor argentino na Tradição. Com T maiúsculo.

Ou com X maiúsculo, diria Eco em Sobre a Literatura, ao explicar a contingência temporal, a angústia da influência, os motivos de um Autor A, que cita B, e nunca o leu. Não podem saber, mas A e B foram leitores de C, predecessor, fonte motriz de A e B. O fim desta cadeia, diz Eco, podemos chamar de X. Ou Tradição.

O outro argumento para o Duplo é menos racional que a filosofia: a cabala. Borges via no argumento gnóstico de que “O que há em cima há embaixo” um forte instrumento para ligar o homem ao divino. Ainda em Os teólogos, o argentino menciona a seita dos especulares; estes, creditando na correspondência do acima com o abaixo, prefiguravam todo tipo de castigo na terra, acreditando na recompensa em seus celestes reflexos. Nesse caso, o duplo assume um caráter metafísico, irracional. Irracional, ressalte-se, como o são todas as seitas.

a Roda, a Serpente. Até a Cruz, que, segundo Borges, nos primórdios, era apenas uma entre tantas seitas…

Borges, os dois Borges – o cabalista e o extraviado na filosofia – prosseguem: somos duplos, somos arquétipos a reproduzir, para um lado ou para o outro, a eterna discussão presente no livro da Tradição. E, se os significados remetem sempre a Tradição, como poderíamos classificar os significantes? Em outras palavras, qual é o papel da linguagem nisso tudo? Primeiramente, conectivo lógico, diz Borges, é que estamos indefectivelmente presos ao idioma – que por si só, é uma tradição. Cada idioma produz as palavras que necessita, diz, no prefácio de O livro dos sonhos, ao analisar a palavra nightmare e a etimologia de algumas palavras germânicas.
No entanto, os idiomas não podem ser configurados como tradições isoladas. A linguagem, circunscrita e contingencial, conecta-se com outros idiomas em tubos tão metafísicos quanto a cabala. As necessidades e o argumentos, platônicos ou aristotélicos, se bifurcam, se encaixam, se justapõem de maneira mágica, irracional. O dinamarquês que pronunciava o nome de Thor ou o saxão que pronunciava o nome de Thunor não sabiam se essas palavras nomeavam o deus do trovão ou o estrépito que sucede ao relâmpago, diz. As necessidades são produzidas pelos idiomas, mas todos possuem um molde ideal: todos somos refletidos no mesmo jogo de xadrez ou no mesmo espelho, ou nas mesmas pintas de um tigre, que, por sua vez, é simulacro de alguma constelação. Borges é proposital e brilhantemente repetitivo nisso.
Assim, de um modo irracional, antes das vãs traduções e organizações de dicionários e thesaurus, encontramo-nos imersos em códices mágicos, feitos, em seu núcleo duro, por simetrias metafísicas, esqueletos formais, significantes musicais matemáticos – não por acaso feitos da mesma matemática da gematria e do notarikon, vertentes do estudo dos números na cabala. Uma matemática ancestral, tão reverencial quanto o livro da Tradição.
A poesia para Borges é, assim, a dança insondável entre o divino significante e o humano significado. Um sentir-se perdido na selva escura da Tradição. É o matemático e inominável ser, que antecede o objetivo e dicionarizado explicar. É uma discussão qualquer, que já foi travada por Platão e Aristóteles.
Uma luta de opostos que insistimos em travar também. Nós, arquétipos. Nós, duplos.

A palavra pesadelo em inglês, nightmare, literalmente a égua da noite, sugeriu a Victor Hugo a metáfora le cheval noir de la nuit, “o cavalo negro da noite”, que podemos considerar igualmente a fonte do “cavalo azul e a madrugada”, de Lorca. Em alemão, alptraum, pesadelo, faz alusão ao elfo ou íncubo que oprime o sonhador e lhe impões imagens horrendas. Cada idioma produz o que necessita, diz Borges – um conceito que ganha ecos na psicanálise. Nesta perspectiva psicanalítica, de acordo com Marco Antonio Coutinho Jorge, em Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan, o inconsciente se diz um pouco em cada língua, nos enraizamentos significantes produzidos em cada um delas termos de seu léxico.


Marcos Peres (Maringá, 1984). Romancista vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2013 e Prêmio São Paulo de Literatura com o romance O Evangelho segundo Hitler.

Publicado por:Philos

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