Esta obra surge enquanto processo de me reconhecer enquanto um corpo não binário. Começar a se entender enquanto corpo trans é questionar esse corpo: o lugar do corpo é então o local do corpo-devir, que é a lacuna, o espaço entre. Para explorar outras formas de vivenciar a corporalidade busco o grotesco, o animalesco, para afirmar que meu corpo é mamífero, é voraz. Me interessa muito mais então, que ele seja percebido assim, enquanto corpo animal, do que percebido na caixa do gênero. Que ele seja percebido por suas práticas e por suas ações, pelo vir a ser. Me interessa que estas práticas regurgitem uma certa noção de normatividade, que elas não abracem, mas que as estranhem.
Me interessa pensar no objeto inanimado como criatura, me apropriar de sua força vital, devorá-lo e assim transmutar sua vida. Penso neste corpo alheio ao meu como uma possibilidade de acoplamento. Toda e qualquer ação em cima disso, resultará em um híbrido.
o corpo
O que pode um corpo? É uma frase de Espinosa. Para começar a tratar o tema corpo, trago uma definição de corpo por Jota Mombaça.
- ficção 1: corpo é topos. Lugar do mundo que habitamos e construímos. É com o que nos movemos e para onde vamos.
- ficção 2: corpo é ficção. E não existe fora dos regimes técnicos e discursivos que o elaboram.
- ficção 3: corpo é faixa de gaza. Território em disputa, onde múltiplas forças imperiais coatuam contra a potência de vida.
- ficção 4: corpo é colônia. Terra saqueada e mapeada pela colonialidade de médicos, sistemas de identificação, nanopolíticas genéticas, redes de vigilância, indústrias farmacêutica, de alimentos, pornográfica, midiática + estado policial, narcopolítica e crime como paradigma de governo.
- ficção 5: corpo é quilombo. Comunidade dissidente para onde convergem as gentes despossuídas.
- ficção 6: corpo é xamã. Ser-em-conexão com as redes de coisas e gentes, que se move entre espécies e gêneros, entre o místico e o material, o ancestral e o contemporâneo.
- ficção 7: corpo é ocupação. Temos que tomá-lo ou senão deixá-lo permanecer tomado pelo império racista, cis+supremacista, heterocapitalista e corpo-colonial.
- ficção 8: corpo é drag. Montação, apenax.
- ficção 9: corpo é transformer. Androide de guerra, com farda da polícia ou com capucha negra.
- ficção 10: corpo é ciborgue. Máquina tecno-orgânica, cheia de próteses e extensões conectadas à informática da dominação, mas também às informáticas da resistência.
- ficção 11: corpo é monstro e escapole para fora dos cercados, desconcerta ficções, resiste às tentativas de definição, cruza fronteiras e está sempre em via de tornar-se outrx.
a casca e a coisa
Muitas das questões dessa performance surgiram como uma forma de reivindicar um poder sobre o corpo, o meu corpo, me apropriando e devorando minha própria criação como uma metáfora para a metamorfose. O corpo no vídeo, numa tentativa de camuflar suas formas ao criar um mascaramento alegórico, na verdade cria uma criatura outra. A roupa, com seus adereços faciais (pedras que simulam dentes, e bordados) se torna também um dos personagens dessa narrativa.
A massa que seguro em meu colo durante o vídeo é barro. Aproximadamente 6 quilos de massa de argila crua, moldada em uma forma que lembra um bebê. O nino e o amo. Este corpo escultórico é um dos personagens da narrativa, mas não há um começo ou um final.
Crio e destruo, me aproprio deste poder sobre um corpo que eu mesmo criei, talvez com alguma intenção antropofágica. Arranco à dentadas nacos deste corpo, amasso com minhas mãos até que seus pedaços estejam espalhados pelo chão e sua forma desintegrada. Reúno as peças em uma tentativa quase inocente de trazer esta vida de volta. Este desejo que se torna materializado também pode ser entendido como a plasticidade de sua libido. O corpo-devir, isto é, o corpo que vem a ser, nunca o é: por ter como pressuposto sua ação, está em constante mutação entre a própria criação e a própria destruição.
Práticas de destruição, práticas de desconfiguração, de expansão de sua imagem: é o corpo que possui vontades e as devora, é o corpo animal, o corpo monstro. É no grotesco que mora o sublime. Este vídeo é também uma exploração para abrir espaço para que o corpo seja voraz, seja firme, seja grotesco, seja feio. Para que o corpo se acople com aquilo que criou, ou para que ele rejeite. Para que ele ame e proteja aquilo que traz para dentro de si.
Há uma certa estética de fetiche que permeia este vídeo, um eroticismo sobre o ato de devorar. A veste, que chamo de casca, foi inspirada estruturalmente em macacões de zentai. Há algo de misterioso e apelativo no rosto que se esconde atrás de tecidos e só revela para o mundo um único orifício. Neste, o orifício é a boca. O orifício opera na lógica do corpo como uma porta para o mundo exterior.
Deleuze e Guattari se referem a esses sistemas como máquinas desejantes. Deleuze, se apropriando de questionamentos de Espinosa sobre o corpo, disserta sobre as potências do corpo enquanto máquina de desejos. O corpo-devir é sempre um corpo em ação, movido a vontades.
Isso respira, isso aquece, isso come. Isso caga, isso fode. Mas que erro ter o isso. Há tão somente máquinas em toda parte, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com seus acoplamentos, suas conexões. Uma máquina-órgão é conectada a uma máquina-fonte: esta emite um fluxo que a outra corta. O seio é uma máquina que produz leite, e a boca, uma máquina acoplada a ela. A boca do anoréxico hesita entre uma máquina de comer, uma máquina anal, uma máquina de falar, uma máquina de respirar (crise de asma). É assim que todos somos “bricoleurs”, cada um com suas pequenas máquinas. Uma máquina-órgão para uma máquina-energia, sempre fluxos e cortes. Deleuze & Guattari (1972)
Moldo este objeto corpo com minhas mãos. Ele encaixa em meu colo, encaixa em meus braços, meus seios e pescoço. O encaixe é afetuoso, e o afeto assusta. Devoro aquilo que criei, destruo a vontade e permito que ela me inunde por instantes. Me deslumbra a autonomia de um corpo e suas estratégias de deseducação. O afeto e o ódio residem em polos diferentes da mesma escala.
Como uma referência aos objetos transicionais teorizados por Winnicott, me afeiçoou a este objeto, que suportará (mesmo que em sua destruição) os avanços de ódio e de carinho. Creio no potencial de agente de um objeto inanimado. Devoro minha criação como Saturno devorou seus filhos.
Crio outros corpos, estranhos, não humanos, que beiram o grotesco e o fofo. A construção de um corpo alheio ao meu supre minhas necessidades mais internas de modificação/controle corporal e disforia de gênero. Ao depositar esta energia modificadora em outro corpo, canalizo estas mudanças e desejos que se materializam e manifestam em suas próprias formas. O cadáver escultórico (não mais corpo escultórico), se torna dismórfico, despedaçado, dilacerado. Este objeto inanimado passa a ser um dos personagens da narrativa do vídeo e reflete a humanidade que deposito nele. O devoro, como quem transmuta essa humanidade hibridamente criada para dentro de si.
Coisas são feitas para falar – geralmente submentendo-as a uma violência adicional. O campo forense pode ser entendido como a tortura de objetos, os quais são esperados que digam tudo, assim como quando humanos são interrogados. Coisas com frequência tem de ser destruídas, dissolvidas em ácido, cortadas, ou desmanteladas com a demanda de que revelem a história completa. […] Coisas condensam poder e violência. Assim como uma coisa acumula forças produtivas e desejos, ela também acumula destruição e decaimento. Steyerl (2010)
Cohen afirma que o monstro nasce nas “encruzilhadas metafóricas”, como a corporificação de um certo momento cultural, de uma época, de um sentimento, de um lugar. O corpo pertence e reflete também ao lugar que habita, a forma como se relaciona, aquilo que o transpassa, que o fere, que o sangra. Ficcionar uma fantasia, um fetiche, ou apenas deixar com que algum lugar do subjetivo tome corpo e forma. Coisificar o desejo.
O corpo do monstro incorpora — de modo bastante literal — medo, desejo, ansiedade e fantasia (ataráxica ou incendiária), dando-lhes uma vida e uma estranha independência. O corpo monstruoso é pura cultura. Um constructo e uma projeção, o monstro existe apenas para ser lido: o monstrum é, etimologicamente, “aquele que revela”, “aquele que adverte”, um glifo em busca de um hierofante. Como uma letra na página, o monstro significa algo diferente dele: é sempre um deslocamento; ele habita, sempre, o intervalo entre o momento da convulsão que o criou e o momento no qual ele é recebido — para nascer outra vez. Cohen (2000)
Monique Huerta nasceu em São Paulo, 1998. É bacharel em artes visuais pela Belas Artes de São Paulo. Sua pesquisa gira em torno de objetos de encaixe em suas conectividades não binárias e a possibilidade da escultura como potencial vivo de contato. Investigações acerca da passivo-agressividade e do embate de forças são lugares pensados dentro da linguagem da instalação, escultura, video arte e performance. A criação de um universo macio e ao mesmo tempo perverso flerta com a ludicidade de um passado onírico que não parece pertencer ou encaixar, e é habitado simultaneamente por feridas agressivamente terrenas ou sexuais. Participou de exposições como “Transespécie – Museu Transgênero de História e Arte (2021)”, “Rastros & Apetrechos – Festivau de C4nn35 (2020)”, “Abraço Coletivo – Ateliê 397 (2019)”, “14 Curta 8 – Festival Internacional de Cinema Super 8 de Curitiba – Centro Cultural Caixa (2018)”, entre outras. Em 2019 foi artista residente do programa Temos Vagas do Ateliê 397. Em 2021 publicou seu texto “Fronteiras entre a criatura e a escultura” no livro Outras Gramáticas da Revista Propágulo.
bibliografia
- DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O Anti-Édipo, São Paulo, Editora 34, 2010.
- PRECIADO, P. Manifesto Contrassexual, São Paulo, N1 Edições, 2015.
- COHEN, Jeffrey. Pedagogia dos Monstros: Os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. São Paulo, Editora Autêntica, 2007.
- STEYERL, H. A THING LIKE YOU AND ME. E-flux journal, Nova Iorque, n15, abril de 2010.
- MOMBAÇA, J. Curso “Perspectivas Mestiças” aborda o corpo terceiro-mundista em São Paulo.