Antes de estudar o Zen, homens são homens e montanhas são montanhas. Quando se estuda o Zen, as coisas se confundem. Depois de estudar o Zen, homens são homens e montanhas são montanhas. Após dizer isso, Dr. Suzuki foi perguntado, “Qual é a diferença entre o antes e o depois?” Ele disse, “Não há diferença, apenas os pés estão um pouco fora do chão”. John Cage

Estou na praia. É um dia excepcionalmente quente. De repente um golpe de vento arranca-me o chapéu de palha erguendo-o tão alto que parecia um papagaio lançado de cima dum monte. Corro pela areia tentando apanhá-lo, mas ele vai velocíssimo. Continuo a correr. A areia queima-me os pés saltam-me lágrimas dos olhos. Não posso correr mais. Não consigo continuar nem regressar. Sinto-me desesperada. Caio no chão. Vou ficar aqui até morrer queimada. Depois claro o chapéu poisou simplesmente ao meu lado. Ana Hatherly

Ana Hatherly e John Cage encontraram-se numa noite em 1967. Não foi esse o primeiro encontro entre eles, e provavelmente nem o último, sentados um ao lado do outro, num restaurante próximo ao Teatro Tivoli, nas cercanias da Avenida da Liberdade, no coração de Lisboa. À mesa, estavam ainda: Merce Cunningham e David Tudor, naturalmente, o poeta Mário Cesariny, o ficcionista Manuel de Lima, o crítico de arte Rui Mário Gonçalves, o escritor uruguaio Nelson di Maggio, e o livreiro e crítico Ricarte-Dácio (que nos anos 1990 abalou o mundo literário lisboeta ao assassinar a mulher, o filho, o gato e depois suicidar-se). O que teriam ali conversado, Ana e John, lado a lado, entre convivas tão característicos? Talvez toleimas, talvez sobre futuras colaborações possíveis ou impossíveis. Efetivamente nada do encontro daquela noite de novembro do auspicioso ano de 1967 tornou-se um produto a ser visitado pela posteridade, fora a fotografia. Mas a trama que unia as duas trajetórias, das mais estimulantes das artes do século XX, de fato já vinha acontecendo, ao longo dos anos anteriores: Hatherly em Lisboa e Cage em Nova York, descobriam, isolados um do outro, a grande onda da filosofia Zen que chegava ao ocidente.

As respectivas histórias de como cada um deles entrou em contato com a filosofia oriental é conhecida entre seus pares e seguidores. Historicamente o fato é que, tanto nos Estados Unidos como na Europa, durante o pós-guerra, surgiu um real interesse da juventude progressista em entender o “Outro oriental, o Outro japonês” (TEIXEIRA in Colóquio Letras, 2017: 75) – diferentes do inimigo (nipônico) e do comunista (chinês) –, possuidor de conhecimentos estéticos, ideológicos e ascéticos alheios ao ocidente. Não se tratando de uma atitude unilateral, é necessário enfatizar que a chegada do conhecimento oriental ao lado oposto do planeta deve-se ao refluxo econômico ocasionado pelo final da segunda guerra mundial. Objetos, livros e todo o tipo de bens culturais, oriundos principalmente do Japão derrotado e devastado, foram negociados entre a população empobrecida local e a vaga de comerciantes europeus e norte-americanos. Não à toa, havia na ilha de Manhattan da década de 1950 um número considerável de alfarrábios e antiquários abarrotados de artigos orientais. Foi dessa forma, diz a lenda, a caminho de casa, ao entrar na livraria Orientalia, que John Cage deparou-se com uma edição japonesa, traduzida para o inglês, da Introdução ao Zen Budismo, de Daisetz Suzuki. Mal desconfiava o compositor californiano que dali em diante tudo seria diferente, não somente na sua carreira profissional, mas também entre os paradigmas da música erudita do século XX.

Aproximadamente uma década depois, o mesmo fato ocorreu à Ana Hatherly, em Lisboa, conforme ela relata no livro Mapas da imaginação e da memória:

Nos primeiros anos dessa década [de 1960], eu realizava já algumas obras gestualistas, quando um dia, quase por acidente, adquiri um dicionário de inglês-chinês, que incluía uma larga secção dedicada ao chinês arcaico. É certo que nessa época eu conhecia já algumas escritas arcaicas e estava relativamente bem informada acerca da importância que, ao longo de milénios, a palavra como imagem (ou o signo em geral) teve na história da evolução das formas, culminando na actualidade nas experiências letristas e da poesia concreta que, aliás também pratiquei; mas na verdade, o meu trabalho de pesquisa sistemática da escrita começou propriamente quando iniciei o estudo metódico desse dicionário. Ao iniciar esse estudo, estava fascinada e obcecada. (HATHERLY: 1973, 6)

Levando em consideração a relação indissociável que Hatherly desenvolveu entre escrita, caligrafia e pintura, suscitada por esse encontro com o dicionário de chinês – bem como a vasta bibliografia sobre a “escripintura” hatherlyana –, o que se pretende neste texto é aproximá-la de Cage a partir da sua experiência com a estética Zen japonesa; especificamente sobre os desdobramentos dessa experiência nas Tisanas, obra de caráter fragmentário, iniciada em 1969 e que esteve em permanente progresso durante a carreira da poeta. Do mesmo modo, não cabe aqui dissertar sobre a magnitude da obra musical de John, influenciada pela mesma grande onda Zen, já virada do avesso por uma abundante e reconhecida fortuna crítica. O presente esboço, portanto, pretende identificar a presença dos ensinamentos orientais na produção textual de Cage, e não musical, em seu primeiro livro de ensaios, Silence. Tanto esse quanto as Tisanas, possuem em comum o estilo ilógico, inconcluso, irônico e perturbador nascido no koan.

Futuramente, a seguir a este breve mapeamento da presença proposital do koan em Ana Hatherly e John Cage, que excepcionalmente os aproxima, virão à estampa ainda dois outros pequenos artigos complementares sobre a correlação entre o Zen e a obra hatherly-cageana: uma amostragem das abordagens parelhas acerca do silêncio, e o último, sobre a presença real e ficcional do mestre em suas respectivas trajetórias.

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Daisetz Suzuki, filósofo nipônico, famoso professor de John Cage, afirma que o koan teria nascido na escola Rinzai do Zen budismo do Japão e exerceria papel central na metodologia monasterial para que os discípulos finalmente abandonassem as angústias da indefinição mental e pudessem “enxergar a verdadeira natureza de si”, ou em bom japonês, atingir o kensho. Na realidade, a palavra japonesa koan vem da palavra chinesa kung. Padronizado pela primeira vez pelo mestre Ta-hui, nascido em 1089, o “koan chinês” era já bastante difundido entre mestres e discípulos da Dinastia Tang, ainda no século X. A importância de Rinzai na trajetória do koan deve-se ao mestre Hakuin Ekaku que transformou sua escola em um centro referencial do Zen budismo japonês, graças à retomada do ensino e também da escrita koanística. É de Hakuin a autoria do mais famoso e paradoxal koan: “Batendo as duas mãos uma na outra, obtemos o som da palma. Qual é o som de uma mão somente?”
Segundo a poeta e crítica Catarina Nunes de Almeida, no seu artigo acerca da influência oriental sobre a obra hatherlyana, os koans

comprovavam desde logo o desinteresse do Zen por um conhecimento decisivo do mundo exterior e, mais ainda, pela expressão desse conhecimento através das palavras. Os diálogos gerados a partir destas sentenças estavam repletos de elementos irracionais, paradoxais e até grotescos, uma vez que a sua finalidade era ensaiar a capacidade dos discípulos compreenderem aquilo que ultrapassa as categorias do pensamento lógico e discursivo (ALMEIDA in Desassossego, 2013: 15).

No prólogo à edição das 222 Tisanas, Ana Hatherly escreve que elas obedecem a um princípio semelhante ao do texto budista: são “sempre acções, directa ou indirectamente, um acontecimento, um evento, mesmo que seja apenas linguístico. Todas as Tisanas dizem sempre respeito a algo que acontece, ao significado ou à questionação do significado de um acontecer que se depara ao narrador e que se oferece ao leitor como um desafio” (HATHERLY, 2006: 3).

No caso de Silence, a sedição Zen deve-se à bem-sucedida apropriação retórica de John Cage dos ensinamentos de seu mestre, Suzuki. No final dos anos 1950, antes de compilar os diversos textos do seu primeiro livro, Cage, ao escutar e discutir em sala os koans criados por Suzuki, teve a ideia de escrever pequenas histórias, como ele explicaria posteriormente, “fragmentos autobiográficos ao estilo dos koans“. Conforme observa seu biógrafo, Kay Larson, “nem todos, porém, são sobre Zen, mas alguns são. A história do mestre dizendo ao aluno para que ele cometa suicídio, por exemplo, é quase palavra por palavra um parágrafo do ensaio autobiográfico de Suzuki, Early Memories. Outras histórias são sobre colher cogumelos, sobre música, ou sobre qualquer outra coisa que tenha acontecido com Cage ou com pessoas que ele conhecia” (Larson, 2013:18). Antes de dispô-las em livro, John Cage narrou seus fragmentos em estúdio, acompanhado pela música de David Tudor, e lançou um disco chamado Indeterminacy, em 1959. A regra geral para todas as faixas era de que todas as leituras (e seu acompanhamento musical) deveriam ser executadas numa duração exata de sessenta segundos cada, não importando a extensão original do texto. Dois anos depois, essas pequenas narrativas juntaram-se a outras, e cerca de oitenta delas foram finalmente publicadas em Silence.

Enquanto John Cage buscava em fatos reais o material para a escrita dos seus “fragmentos”, Ana Hatherly sugeria, pela leitura de seus textos, que sua criação fora plenamente fictícia, embora vários gêneros estejam ali reconhecidos, sugerindo, em certos momentos, que há ali qualquer lapso de realidade: “o aforismo, a parábola, a micronarrativa, […] o diário, o apontamento de viagem, a fábula, a entrada enciclopédica que parodia a lição dos moralistas do séc. XVII, o comentário crítico, o discurso demonstrativo etc.” (GASTÃO in Plural Pluriel, 2017:1). O reforço de que toda a possível moral ou conclusão que se possa tirar das Tisanas é enganadora, é ressaltado pela epígrafe de Epinémedes de Cnossos: “Todos os cretenses são mentirosos e nunca deixam de mentir”. Ana acaba, desse modo, por levar o leitor ao paroxismo inerente ao koan, como quer Suzuki: “Ele desafia a interpretação intelectual e, assim, sem nos dizer explicitamente, faz com que caminhemos pelo caminho da negação” (Larson, 2013:267). Afinal – conforme a resolução do aprendiz do mestre Hakuin, depois de em vão indicar tantos outros sons que poderiam ter sido produzidos por uma única mão a bater palmas e, finalmente, desistir –, o som de uma mão somente é nada mais do que o som sem som. “Lecture on nothing”, e provavelmente o texto de Silence de maior notoriedade, começa não por acaso da seguinte forma:

Eu estou aqui, e não há nada a dizer. Se há entre vocês aqueles que querem chegar a algum lugar, podem se retirar a qualquer momento. O que nós precisamos é de silêncio; mas o que o silêncio precisa é que eu continue a falar.

Todas as citações em português do livro “Silence” de John Cage fazem parte da edição brasileira ainda inédita, traduzida por Beatriz Bastos e Ismar Tirelli Neto, a ser publicada pela editora Cobogó.

No prefácio do livro, John confirma que sua “conferência sobre o nada” está de fato contaminada pelo seu envolvimento com o Zen, e cita como exemplo as irônicas seis respostas para as seis primeiras perguntas que seriam feitas após a palestra, independentemente de quais fossem, e a repetição, por cerca de quatorze vezes ao longo do texto, da frase: “Se alguém está com sono, que vá dormir”. Cage conta que, por conta dessa repetição, sua amiga Jeanne Reynal “levantou-se no meio, gritou, e disse em seguida, enquanto eu continuava a falar, ‘John, eu te amo demais, mas não consigo suportar nem mais um minuto’”.

Se não é pela obtenção do kensho, qual seria, portanto, a finalidade da utilização da filosofia Zen na obra escrita de Ana Hatherly e de John Cage? Ele responderia: “Eu não tenho nada a dizer e estou dizendo isso – e isso é poesia do jeito que eu preciso”. A portuguesa retrucaria com um trecho da Tisana 126: “alguns mestres dizem que o próprio do prazer é não poder ser dito”. O fato mais elementar do contato de ambos com a cultura asiática não acontece por qualquer sugestão religiosa, embora a conduta de suas respectivas vidas e obras tenham se redimensionado a partir de então.

Interessei-me, na verdade, pelas religiões orientais; não foi só o budismo; estudei-as cuidadosamente nos anos 60, quando isso era fundamental e surgia como tendência da época. Tratava-se de uma forma de subversão, de contrariar a minha religião profundamente ocidental, católica. Hoje não sou obrigada a praticar nenhuma, porque reconheço um princípio superior a todas elas. Esse é o aspecto que me interessa, o divino, o sagrado, desenquadrado do institucional (in GASTÃO, 2011:36),

diria Hatherly, em entrevista, já no fim da vida. A absorção do processo do koan, antes, reforçou os princípios de suas vultosas e respectivas responsabilidades modernistas, calcadas pela subversão. Inconcluso, work in progress, pleno de humor, paradoxal, deliberadamente de difícil definição, o koan, destituído de exotismo, torna-se, portanto, um objeto maleável e convidativo, de fácil remodelação, por parte do artista: “contrariamente ao espírito búdico, que aspira à imobilidade, as Tisanas aspiram à dinamização. Daí seu rosto ocidental, irônico e pungente”. Já o leitor descobre-se em um estranho estado de alerta, ou melhor, conforme observa Eduardo Paz Barroso (sobre o trabalho de Ana Hatherly, naturalmente aplicável ao trabalho de John Cage), o “espectador/leitor tende a permanecer num compromisso ao mesmo tempo solene e irónico”.

Solene porque a palavra, ou o que resta dela, a frase em permanente reformulação, exige um ritual próprio, uma leitura lenta e firme. Irónico porque a desmistificação das equivalências entre “significado” e “significante” são capazes de produzir desarmantes quebras de ritmo na inteligibilidade do real e da matéria em que este se concretiza. (TEIXEIRA in Colóquio Letras, 2017: 72)

Ao início de Silence, Cage pede para que não culpassem o Zen por tudo o que ele estava a dizer e fazer. Ele próprio não suportava ficar na clássica posição de zazen para meditar (sentado ao chão, com as pernas dobradas e coluna ereta) e nunca se tornou de fato um budista. É fato que o Zen na vida de Cage acabou por fornecer uma solução teoricamente atraente para impasses musicais que lhe pareciam intransponíveis (Indeterminacy, de título de álbum de koans, tornou-se ideia basilar do método de composição cageano, por exemplo) e emocionalmente satisfatória para a problemática vida pública excêntrica versus vida interior imposta pelo “armário”. O Zen e o pleno exercício do desapego, principalmente após a repercussão de Silence, naturalmente o alinharam ao pensamento anarquista. Num mundo partido entre Estados Unidos e União Soviética, estabelecer-se enquanto vanguarda, equilibrando-se numa linha que liga o Zen budismo japonês à anarquia utópica, repelido pela norma, restou a John Cage o papel do gênio, do guru. Ou, visto pelo lado de fora, o papel do excêntrico.

***

Ana Hatherly reuniu os seus textos sobre a visita de John Cage a Lisboa na parte final de seu livro Obrigatório não ver. Todos os presentes na foto do jantar de novembro de 1967 deram seu depoimento por escrito sobre a aparição de Cage, Cunningham e Tudor naquele Portugal ainda tacanho e salazarista. Rui Mário Gonçalves percebe na performance dos norte-americanos justamente aquilo que John indica no prefácio de Silence; diz Rui: “é indiferente falar de Dada ou do budismo Zen a propósito de John Cage. É o mesmo comportamento”. Ana destaca que “os textos que Cage leu durante How to pass, kick, fall and run [título da performance do trio], e eram a sua música, são ‘acontecimentos’, parábolas no estilo Zen”, indubitavelmente seus próprios koans. Por fim, a poeta arremata o parágrafo afirmando que o “Zen é também um gesto, uma atitude, um cálculo de possibilidades” (HATHERLY, 2009: 133). Curiosamente a reunião de sua própria obra poética que Hatherly publicou em 2001 (na qual, propositalmente, exclui as Tisanas) chama-se Um calculador de improbabilidades.


Mariano Marovatto (Rio de Janeiro, 1982) é um compositor, cantor, violonista e poeta brasileiro. Apresentador de TV, comandou e roteirizou entre 2009 e 2016 o programa Segue o Som, na TV Brasil.


Bibliografia

ALMEIDA, Catarina Nunes de. “Ana Hatherly e a lição oriental” in Revista Desassossego. São Paulo: USP, 2013
CAGE, John. Silence. Middletown: Wesleyan University Press, 1961
Colóquio Letras 193. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2016
GASTÃO, Ana Marques. O falar dos poetas. Lisboa: Afrontamento, 2011
“As Tisanas de Ana Hatherly – auto-retrato de um samurai ocidental” in Plural Pluriel, 16: Paris, 2017
HATHERLY, Ana. Mapas da imaginação e da memória. Lisboa: Moraes Editores, 1973.
____Obrigatório não ver. Lisboa: Quimera, 2009
____Um calculador de improbabilidades. Lisboa: Quimera, 2001
____463 Tisanas. Lisboa: Quimera, 2006
October Files 12: John Cage. Londres: MIT Press, 2011
LARSON, Kay. Where the heart beats. Nova York: Penguin, 2013
SUZUKI, Daisetz T. Zen and japanese culture. Nova Jersey: Princeton University Press, 2010
Writings from the Zen Masters. Nova York: Penguin, 2009
Publicado por:Philos

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