Todos eles se esqueceram, se esquecerão ou estão se esquecendo — dizia Abra para si mesma, enquanto observava da janela de seu casebre o movimento das estátuas sem memória que se arrastavam pela Rua dos Quimbayas. — Pensam ter um aleijo, os afortunados. Minhas memórias é que são mancas. Claudicam, capengam de dor. Quero me esquecer. Quero me esquecer.
Quando ainda lecionava nas escolas do Vale do Aburrá, Abra contara algumas vezes a mesma história a seus alunos a fim de lhes explicar o que ocorria a muitos de seus parentes. Na metade do século XVIII, um forasteiro chamado San Pedro Gómez se mudou com a mulher e os três filhos pequenos para os arredores de Angostura, trazidos pela promessa de que o ouro pululava nos rios da região ainda mais farto e abundante do que os cardumes de lambaris. No decorrer dos anos de labuta inútil nos garimpos que solapavam a geografia e as vidas locais, tiveram como única riqueza os descendentes que se espalharam por Yarumal, Medellín e outras localidades de Antioquia. Não sabiam que carregavam no sangue um tipo raro, precoce e violento do Mal de Alzheimer, o qual os colombianos batizariam mais tarde de la bobera. Aqueles que sobrevivem incólumes à doença e passam o resto da vida como cuidadores dos entes abatidos pelo mal costumam dizer que na região não se herda ouro, mas esquecimento. Os anciãos atribuíam a degeneração mental de tantas pessoas da mesma região aos feitos do lendário padre Marianito. Reza a tradição popular que o sacerdote havia proibido as pessoas de tocarem uma árvore que ele afirmava ser maldita. Por desobedecerem às ordens do religioso, alguns jovens incautos teriam sido os primeiros cristãos punidos com a debilidade.
Em que jardim se esconde tal árvore? Ai, como eu quero abraçar e beijar o seu tronco nu ― desejava Abra. ― Se afirmam que essa peste é hereditária, por que ainda me lembro? Por que os pensamentos que tanto anseio sepultar sob a falência de minhas faculdades mentais me massacram dia e noite? Ainda criança, perdi minha mãe para a praga. A pobrezinha passou seus últimos dias de vida se alimentando por uma sonda nasogástrica sobre os lençóis que ela mesma havia bordado quando possuía vigor. Não aguento mais cuidar de Nestor e de Nivaldo. Sinto que estes dois fantasmas atoleimados me enlouquecerão. É muito doloroso assistir aos veios de saliva que se abrem em suas barbas de homens feitos, ambos sentados sobre as espreguiçadeiras nas quais um dia também morrerão esquecidos de tudo e por todos. Amanhã, completarei quarenta e dois anos de idade. Estou velha demais para me esquecer. E eu não quero me lembrar para sempre.
Duas? Três semanas? Há quanto tempo Abra havia sido abusada por um guerrilheiro do Ejército del Pueblo? Fazia cálculos nos dedos, olhava contrariada para o calendário e parecia não saber mais contar os dias. Após ser deflorada em uma manhã de sol, no chão da rua, atirou pedras contra o seu malfeitor, enquanto ele arrastava para dentro de um jipe uma moça recém-chegada de Cartagena, bem mais jovem e mais viçosa do que ela. Desde aquele dia, Abra deixou de ser reconhecida por sua comunidade como uma professora respeitada e casta. As mulheres não a cumprimentavam mais e os homens agiam como se ela houvesse se tornado mais receptiva para toda a sorte de assédio. Daí, pouco saía de casa, tendo a janela que dava para o passeio como única distração social:
Essa deve estar doente. O outro não, mas vai ficar. Aquele tem três irmãs vitalinas prostradas pela bobera. A viúva da rua de baixo dá dois passos e para, dois passos e para, se esquecendo. Nestor faz aniversário em abril. E Nivaldo? Nivaldo nasceu em junho. Isso. Julho.
No dia seguinte, pouco antes de acordar, Abra sonhou que as FARC fariam nova pilhagem e que, enfim, reencontraria seu molestador. Talvez tivesse a chance de restabelecer a consideração maculada, caso arrancasse um naco de carne da garganta daquele rapaz. Se o fizesse, os homens da vila conservariam suas vergonhas dentro das calças e as mulheres perderiam a coragem de lhe dirigir ofensas caluniosas. Preferia desenvolver la bobera do que, em uma terra sem memória, ser lembrada como uma mulher de pouco valor.
Se ele planejava levar para si aquela cantora de palenquero, por que me fez mal, e não à mulher que de fato desejava? Ele me deve outra vida, pois aquela que eu tinha se foi com a minha honra. Não aguento mais cuidar de meus irmãos. Será que o desgraçado se lembrará de mim? Seu sangue no fio de uma vingança poderia me salvar, fazer com que todos se esquecessem de minha desonra. E se ele me matar antes? Quem alimentará os gêmeos? O mais velho se chama Nivaldo, mas, qual o nome do caçula? Para que estou afiando o meu cutelo? É melhor fechar as janelas. Um dia desses sequestraram uma artista de Cartagena. Coitada. Imagino as coisas terríveis que devem ter feito a ela. Me proteja do mal, padre Marianito. Eles pilham, matam e estupram. Que eu morra antes que violem minha castidade! Quero me esquecer. Quero me esquecer.
Emerson Braga (Fortaleza, Ceará). Leonino e, segundo os amigos que provam de seus escritos e de seus experimentos gastronômicos, excelente cozinheiro. Premiado em diversos concursos regionais e nacionais, em 2017 seu texto A profecia latente figurou na coletânea organizada pelo Prêmio Sesc de Contos Machado de Assis. Teve seu primeiro romance publicado no ano de 2016 pela editora Penalux, intitulado A morte de um embusteiro viajante. Em 2018, lançou pelo selo Scenarium Plural o livro de contos Muiraquitã. É colunista da Revista Plural.