Juaréz não gosta muito de falar sobre política, mas o faz por motivos profissionais. Ele não fica nenhuma semana ao menos sem ter que se manifestar a esse respeito. Algo é preciso dizer. Também pudera, o Chile teve uma das piores ditaduras da América – e do mundo, talvez a mais violenta. Se bem que de violência estamos também bem servidos por aqui. Claro, em uma rápida comparação, todas as ditaduras – não somente as da América Latina moderna – foram violentas. Até hoje, escutam-se os gritos de muitos presos políticos, alguns jovens que nem sabiam exatamente o que estavam fazendo naquele lugar errado, naquela hora incerta. Muitos pais ainda choram seus filhos que viraram poeira no deserto do Atacama, pedras de gelo na prisão de Ushuaia, ou ainda pó no Cerrado brasileiro. Algumas pessoas nem tiveram a oportunidade de se explicar, ou o direito de saber por que estavam sendo levadas da vida dessa forma, colocadas em quartos escuros, sem alimentação ou higiene, sem contato com a família ou amigos. Um horror. E isso sem contar a tortura psicológica que foi feita entre tantas e tantas ideias e pessoas. Bastava ter os cabelos longos, a barba por fazer, ou ser jovem que já era vítima aqui, na Argentina ou no Chile. A violência no Brasil foi realmente grande. Explica Antônio, sentado ao lado de Juaréz. Tem uma cena que não me sai da cabeça: vi em um documentário sobre esses anos de ditadura brasileira um jovem sendo arrastado pelas ruas do Rio de Janeiro, com um dos pés amarrados no escapamento de um carro policial sem poder se proteger e desaparecendo pelo caminho, deixando pedaços de dignidade, de pele, de ossos. Ele não concordava com o governo. Continua Antônio. Nesse documentário, a música de fundo era Angélica, do Chico Buarque: Quem é essa mulher, que canta sempre esse estribilho, que só queria bailar meu filho que mora na escuridão do mar. Sabe aquela? Sempre que escuto essa canção tenho vontade de chorar e nem sei exatamente por qual razão. Pessoalmente não tive problema algum, eu nem me lembro direito desse período. Minha mãe morava no interior e era um pouco desligada dessas questões. Em 85, quando voltamos a ter uma democracia (que a propósito não é democrático nem aqui nem na China. Nação democrática é a Suíça, não o Brasil, não os Estados Unidos, não a Venezuela), eu era muito pequeno. Lembro-me que torcia para o Tancredo Neves, nem sabia quem era Tancredo Neves, e veio um tal de Sarney na sequência. E não é que Sarney é imortal da Academia Brasileira de Letras? Bem, retoma Antônio, depois de despedaçado, o jovem, talvez filho de Angélica, uma mãe que ficou sem o seu filho, foi jogado ao mar, tal como Alfonsina Storni. Nesse caso, a poeta argentina o fez como um grito pessoal, particular de dor e angústia. (Mas que não pode ser desconsiderada apenas porque foi uma dor particular). A dor de um ser humano é a dor de toda a humanidade. Talvez por isso me preocupe tanto. Analisa Antônio. Juaréz parece incomodar-se com a história ouvida, nesse caso não porque queria mudar de assunto simplesmente, mas porque a imagem o chocou de fato. É assim, não é? “Nostalgia de la Luz”, pensa Juaréz, um documentário tão forte quanto essa imagem que seu cliente acabou de relatar, ou ainda mais forte, se considerarmos a tortura psicológica: mães chilenas cansadas de andar, já idosas e ainda persistentes, buscando a cada dia o pó, a poeira de seus filhos jogados no deserto do Atacama. Quem sabe não viraram luz e foram levados pelo cosmos para outros planetas perto ou longe da terra? Mas elas encontraram motivos para continuar a viver dessa forma. Todas juntas, como fossem apenas uma. E o governo continua tratando como nada tivesse acontecido de tão grave. Mas como é essa história do Pinochet, Juaréz? Pregunta un indignado ciudadano. Bajito, Antônio, los chilenos todavia tienen un poco de vergüenza: Pinochet cuando vivía, nada pasó. Juzgado? Sim, mas não condenado. Se condenado, ficou em casa. Na própria casa. Morreu de velho, não de arrependimento ou de nostalgia. Morreu simplesmente porque o corpo não batia mais. Por isso, todos ficam em silêncio. Devemos cochichar sobre isso para que não tenhamos problemas depois. Imagina, ainda é assim nos dias de hoje. Hace algunos días llevé un cliente a este museo en el centro de Santiago, um museu que deveria contar nossa história completa, até os dias de hoje. Pero, sabes lo que hace falta? Pinochet. Ele nem aparece nesse momento. Sim Allende. Muerto. Diz Juaréz, em portunhol. Assassinado por um regime, por um grupo de pessoas que pensavam de outra forma. Não sei qual é o certo, mas ao menos deveriam falar um pouco em voz alta o que realmente aconteceu. Aviões sobrevoando o Palacio de la Moneda, metralhadoras ao ar e Allende morto por Pinochet. Foi nessa época que Bolaño foi embora do Chile. Pensou em voz alta Antônio. Cómo? Pergunta Juaréz. Nada não, pensei em voz alta. Afirmou.
Como parte desse passeio, Juaréz sempre prepara uma trilha sonora bastante chilena, típica, para que os turistas que estão viajando com ele pelo deserto, pelas montanhas ou pelo frio da Patagônia possam sentir-se ainda mais plenos. Manuel Garcia cantando Violeta Parras. Antônio lembra-se de um programa antigo de TV, talvez na época da ditadura: Mercedes Sosa cantando com Milton Nascimento, Chico Buarque e Fagner. Este último havia gravado “Traduzir-se” com canções de compositores da América Latina, com a participação inclusive da própria Paloma Negra. Uma das gravações é parceria com Ferreira Gullar. Pensa Antônio em silêncio. Na época da faculdade, lembra-se do dia em que esteve muito próximo do maior poeta vivo desse país! Na noite anterior havia ouvido uma palestra no Teatro da Reitoria lotado. Muitos poemas desfilados por aquela sala, ditos pelo autor, contados por uma alma única, cantados sem ter explicações. (Poesia não se ensina, diz o outro. Sobre poesia não se discute, afirma esse aí do lado. O autor não deve sequer falar sobre literatura, insistem J. D. Salinger e Dalton Trevisan. E assim cada um tem sua opinião e ninguém tem a razão. Pronto. Tenho dito!). Mas o que impressionou Antônio foi, sem dúvida nenhuma, sua história sobre o dia em que Allende foi assassinado: ele havia ido comprar leite, passou por um campinho de futebol, no qual várias crianças e jovens descalços chutavam o pó da terra e a bola, quando viu por sua cabeça um avião sobrevoando baixo, em direção ao la Moneda. Assim que o avião partiu, o silêncio foi tão grande, que se ouvia o bater do coração entre sua camisa e a carteira de cigarro. Gullar continua olhando em direção para aonde voou o avião. O estrondo foi tão grande que ele derrubou as garrafas de leite que segurava em uma sacola de supermercado, e viu todo o líquido branco caindo no chão, perdendo-se pelo bueiro da rua. As crianças e os jovens que jogavam pelota saem correndo de forma caótica, cada um para uma direção, buscando abrigo de alguma forma, sem ao menos entender o que estava acontecendo. Até que o mais velho entre eles organizou a confusão e foram embora pela mesma rua, do lado oposto do la Moneda. E assim, foi-se Allende. Gullar não podia mais viver em Santiago. Viajou para Cuba. No dia seguinte da apresentação do poeta para os alunos da universidade, Antônio estava caminhando pela rua XV, perto da praça Osório e o viu de longe: figura magra, esguia, cabelos longos, brancos. Era a oportunidade para dizer o quanto gostava de seus textos, de sua poesia. Mas por que eu faria isso. Pensou Antônio, naquele momento. Estar ao lado do Ferreira Gullar simplesmente para dizer que gostava de seus poemas? E, dessa forma, desistiu de se aproximar e caminhou ao seu lado como passasse por um homem magro, esguio, com cabelos longos, brancos. Juaréz, já esteve ao lado de um poeta? Pergunta Antônio. Cual es la diferencia? Questiona Juaréz. Nenhuma. Pontua Antônio. Logo depois de dizer isso, ele apoia sua cabeça no encosto do banco do carro, olhando pela janela, e lembra-se do dia em que caminhando pelo calor de Manaus, deparou-se com o poeta Thiago de Mello andando pelo bairro, como se nada mais pudesse fazer a não ser andar pelo bairro. Todo de branco, like always. Flutuavam de sua boca versos que se reuniam em forma de estatutos: fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu. Parágrafo único: o homem confiará no homem como um menino confia em outro menino. Durante a ditadura brasileira, Thiago de Mello morava no Chile. Era amigo de Neruda e Ferreira Gullar. Juaréz pergunta para Antônio se deve trocar a música que escutam. Você tem Silvio Rodriguez? Pergunta Antônio. Mas ele é cubano, verdad? Devo tener, espere. Procura Juaréz, sempre em portunhol. Ojalá que tenhamos um dia em que possamos nos expressar sem ao menos temer a metralhadora ou a corda do outro. Assim que no Brasil, apenas um convite a fim de parar de tomar a pílula, como diz a música de Odair José, transforma-se em um caos nacional!
Antônio, o turista, olha pela janela do carro onde está com Juaréz, o motorista, indo em direção ao vulcão Licancabur, perto de San Pedro de Atacama, e pensa em todas essas associações que faz quando se lembra de Política e América Latina. Não tem como vir ao Chile e não respirar esse momento. Analisa Antônio para si. No último final de semana, visitou uma das casas de Pablo Neruda, a de Santiago, La Chascona, nome dado por ele para homenagear sua outra mulher, a dos cabelos encaracolados, pele morena. A dona da Chascona. Em uma parte da biblioteca da casa, ao lado da chaminé, uma poltrona e uma foto da mesma posição (mas com Neruda sentado nela). O ano era 1973, pouco antes do bombardeio e da morte de Allende. Nos dias seguintes, a casa foi tomada por pessoas apoiando o regime militar e destruíram parte da construção, roubaram muito da dignidade e dos objetos pessoais do poeta e de sua outra mulher. Dentro dessa sala, que hoje é museu, um documentário mostrando fotos e declarações de pessoas que estiveram nessa casa durante esse período. Nesse mesmo ano, morreu Neruda. Sua casa foi invadida, e o Chile começou a viver no meio de uma nuvem. Mas, naturalmente, há quem tenha gostado desse momento histórico, já que durou até o início dos anos 90. Analisa Antônio, quieto. Ainda nessa visita a uma das casas de Neruda, (ele também conheceu a de Isla Negra, onde lado a lado estão Matilda e Neruda) Antônio para em frente à medalha do Nobel que o poeta recebeu em 1971 e se emociona. Não pelo prêmio em si. Prêmios não são importantes (será?). A questão é que pouco se pode fazer sem algum prêmio hoje em dia. Depois que inventaram que os escritores tinham que vencer algo para serem validados como escritores, o universo literário entrou em uma dinâmica absolutamente classificatória. Como se fosse a Literatura um grande prêmio em que vence o cavalo mais rápido, com a crina mais lustrada e o cavaleiro mais leve. Antônio sabe bem disso, nunca venceu um prêmio com seus livros que ninguém lê e que foram escritos para a poeira do deserto. Sente-se incomodado com essa situação, mas sabe que não tem validação nenhuma. Não tem leitores. Não é, portanto, escritor. Lamenta-se Antônio. Juaréz, você lê livros de literatura? Pergunta Antônio, um escritor que não publica, um escritor que não tem leitores, portanto não tem literatura. Mas continua escrevendo. Viaja para escrever. Escreve para poder sair do lugar em que se encontra trancado. Olhando a medalha, imagina o que terá pensado Neruda no momento em que soube do Prêmio: teria sido un otro premio, nomás? Teria se emocionado? Apenas confirmou o que já sabia que poderia acontecer? Em uma das raras entrevistas nos anos 70, Neruda, sentado em seu apartamento em Paris, com o Gabriel Garcia Marques, fala sobre a diferença entre poesia e prosa (ou como diria Bolaño: o poeta escreve na horizontal e o prosador na vertical) e o colombiano, talvez o maior escritor de todos os tempos em todas as culturas de todos os mundos, disse que Neruda venceu o prêmio que ele venceria no futuro. Já sabia. Já era consagrado e validado, mas o Nobel trouxe ao Gabo o status de confirmação fatal de sua literatura. Ponto. Ele era o maior e isso foi confirmado em 82. (Mas um prêmio confirma algo?). Algumas noites Antônio não dorme. Passa cada minuto acordado lendo ou ouvindo os discursos dos ganhadores do Prêmio Nobel de Literatura. Dalton Trevisan nem entrevista dá. Salinger foge das câmeras quando vai ao supermercado. Há escritores que se anulam quando poderiam falar sobre literatura. Essa arte basta nela mesma. Antônio admite ter dito essa última frase em voz alta, já que Juaréz fez uma cara de quem não havia entendido a pergunta.
Eles estão passando por uma paisagem única. Antônio emociona-se com o deserto do Atacama beijando o oceano Pacífico na curva da estrada em Antofagasta. Para Juaréz, é apenas mais um dia de trabalho. Antônio nunca passou por aqui. Juaréz não gosta muito de falar sobre política, mas o faz por motivos profissionais. E continua interagindo com o cliente brasileiro. Cada dia alguém de uma parte diferente do mundo. Cada pessoa com as mesmas perguntas, mas com respostas absolutamente únicas. Com visões e mundos próprios. O motorista nunca saiu do Chile, mas conhece o mundo todo. Nunca estudou outro idioma, mas é poliglota e fala mais de seis línguas fluentemente, duas entende bem e duas começou agora a prestar atenção. Eu estive em todos os continentes desse planeta sem ao menos sair do Chile. Gritou Juaréz, agora em português. O Chile é um país tão estreito que se um grupo de 10 chilenos ficarem lado a lado tocariam as Cordilheiras dos Andes de um lado e o Oceano Pacífico de outro. Mas ao mesmo tempo é um país tão vasto de diversidades que no mesmo dia si uno camina de una punta al otra pode congelar-se na Patagônia e se queimar no Atacama. E assim eu passo os meus dias por aqui. Reflexiona Juaréz. Sem ao menos ter saído um dia se quer, sei de tudo o que se passa por aí. E ainda arrisco a dizer que poderia identificar de onde você vem apenas quando te escuto dizendo “hola, qué tal?”. Afirma Juaréz. Basta apenas um suspiro antes da frase para que ele identifique de onde vem essa pessoa. Juaréz trabalha há mais de 30 anos passando todos os dias pelas mesmas estradas. Mas cada dia é diferente um do outro. Cada cliente carrega sua própria história e querem chegar a um lugar único. Aprendeu dessa forma a se comunicar com todos, era o que podia fazer de melhor. Aprender seus idiomas, fazer parte por um instante de suas culturas. Mesclar.
Antônio queria subir o Licancabur. Juaréz disse que poderia levá-lo até os pés do vulcão, na divisa com a Bolívia. Deserto do Atacama. E assim partiram de Santiago ainda de madrugada para que pudessem chegar ao fim de tarde por lá. Dessa forma, descansariam em um hotel na beira da estrada e, na manhã seguinte, partiriam tão logo o sol começasse a brilhar. Assim, iriam até um pedaço do caminho andando. Chegariam até o base camp e lá dormiriam mais uma noite. Juaréz não iria com Antônio até o topo do vulcão, aguardaria embaixo. Ele queria fazer o caminho sozinho. Na verdade, seria perfeito se pudesse subir o Licancabur e não voltar mais. Ficar por lá quanto tempo fosse necessário. Olhar sua vida do alto, procurando palavras e sons que pudessem ocorrer a qualquer momento. Alguém disse para eles que se querem subir, devem cuidar com as bombas deixadas pelos chilenos contra os bolivianos alguns anos atrás. Por aquela direção é mais seguro. Os dois chegam, conforme o previsto, no fim de tarde em San Pedro de Atacama e devem procurar um lugar para dormir. Uma cidade turística que nada mais representa de verdadeira. Apenas um cenário montado de como viviam os primeiros moradores. Os dois dão entrada em um hotel um pouco afastado do centro do Pueblo. Dessa forma, podem descansar com mais tranquilidade depois de um dia inteiro viajando pelo deserto. Antônio sonhou que estava em Curitiba sentado no terraço de um apartamento na mesma altura de outros, rodeado por telhados com chaminés que soltavam fumaça o tempo todo. Era uma confusão com Paris? Ou era, na verdade, a mesma Praça Osório de seu dia-a-dia, por onde passa sem pensar, sem sentir as ruas, apenas reclamando dos paralelepípedos soltos que escondem poças d’água quando alguém pisa neles? No sonho, Antônio mostra-se nervoso, olhando para todos os lados, como se estivesse com medo de alguém, esperando que alguma coisa pudesse acontecer. Uma angústia tão grande que sentia seu pulmão colado nas costas de tão forte que tinha que respirar. Suava a cântaros. Sempre teve muitos pelos no corpo e isso o faz suar mais do que o normal, mas nesse sonho não tinha nada, era liso, e ainda assim suava como nunca. Ele começou a correr em direção ao chafariz no meio da praça e, para aliviar o calor, buscou refrescar-se junto aos meninos que moram na rua. Começou a jogar água para cima esperando as gotas caírem em sua cara. Quando enjoou de se banhar com esses meninos, pensou em subir a estátua da fonte até poder encostar sua mão na cabeça da figura. Tentou por um lado, buscou apoio do outro, até conseguir passar os dedos perto da parte mais alta da imagem. Voltou a suar. Dificuldade em respirar. Era como se a estátua estivesse nos 5.920m de um vulcão. Licancabur. Antônio acorda no meio da noite, molhado de suor, cansado e com a respiração ofegante. Imaginou que fosse morrer com o ar rarefeito do sonho e ficou em dúvida se no sonho ele chegou a cair de cima da estátua ou se apenas tinha medo que isso pudesse acontecer. Quando se deu conta, estava debaixo das cobertas, sem poder respirar. Poeira acumulada por anos.
No dia seguinte, os dois seguiram seu destino e foram até o base camp do vulcão e por ali se quedaran por un día más. Você espera aqui, Juaréz? Perguntou Antônio. Claro. Respondeu Juaréz. Os dois passaram o dia inteiro no refúgio, esperando que Antônio pudesse dormir cedo, a fim de sair em direção ao topo da montanha durante a madrugada do dia seguinte. Dessa forma, poderia chegar ainda com o sol baixo e retornar antes do sol se por. Juaréz como sempre faz, ficaria jogando cartas com os outros motoristas e guias que estavam por ali aguardando seus clientes que já estavam no vulcão ou que iriam partir também na madrugada seguinte. Antônio passou o dia pensando sobre a conversa que tiveram no carro no dia anterior. Subir o Licancabur significaria uma fuga dessa realidade? Seria apenas uma tentativa de olhar com outros olhos? A maioria das pessoas escolhe apenas o ponto fora da curva para se preocupar e se esquece de todos os pontos que confluem para frente. Esquecemo-nos de tudo que funcionou até hoje para lamentar o único detalhe que não deu certo. Olhando para um pequeno inseto insistindo em subir pelo seu dedo, Antônio se demora nesses pensamentos, e assim passa o dia. De tempos em tempos saía para urinar e se demorava olhando o vulcão. Imenso, dominando a paisagem. Nada mais ao lado tinha importância. Esse ser pululante, expulso do chão para tentar tocar o céu. Assim o é.
Às 4 da manhã, Antônio acorda Juaréz e lhe chama para partir. Pero, y o Licancabur? – pergunta Juaréz, enrolando-se novamente em portunhol. Nada disse Antônio. Ele apenas o espera ao lado do carro, olhando fixamente para o topo do vulcão, onde o gelo é eterno e de onde vem a água do rio que passa ao lado do refúgio. Os dois partem em direção contrária ao vulcão, pegando a estrada em direção à Santiago. Antônio ainda se lembra de quando escutou da professora, na quinta série do ensino fundamental, que havia uma região no deserto do Atacama em que nunca havia chovido. Em um trecho entre San Pedro de Atacama e Antofagasta. Exatamente por onde passavam nesse momento.
Olhando pela janela do carro, pede para Juaréz parar o carro. Ele abre a porta, sai lentamente do veículo e começa a caminhar para fora da estrada, cada vez mais distante. O motorista compreende que é hora de continuar a viagem sozinho. Antônio levanta a mão, sem olhar para trás, e despede-se de Juaréz…
Carlos Machado (Curitiba, Paraná, 1977). É escritor, professor, cantor e compositor. Publicou os livros A Voz do outro (2004, 7Letras), Nós da província: diálogos com o carbono (2007, 7Letras), Balada de uma retina sul-americana (2008, 7Letras), Poeira fria (2012, Arte & Letra) – considerado um dos melhores títulos daquele ano – e Passeios (2016). Integrou a banda Sad Theory, participando dos discos The Lady andthetorch (2002), A Madrigal ofsorrow (2004), biomechanical (2006) e Descrítica patológica (2012). Em 2008, iniciou carreira solo, rendendo os álbuns Tendéu (2008), Samba portátil (2010), Longe (2012), o DVD ao vivo Longe e outras canções (2012), o trabalho em espanhol Los Amores de paso (2013) e Bárbara (2015).