Lima Barreto é um escritor digno de muitas homenagens póstumas, como a que recebeu na FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty, em 2017. Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1881. Filho de pais pobres, com ascendência escrava, foi jornalista e um escritor de críticas severas à República Velha de nosso país. Mesmo nos dias atuais, mais de cem anos após sua escrita, você pode perceber a atualidade dos temas de suas obras, como os absurdos que acontecem entre os que estão no poder e uma sociedade explorada e sem oportunidades. Lima Barreto privilegiava em sua escrita os pobres, os boêmios e os apaixonados. Sua vida foi muito conturbada pelo alcoolismo, sendo internado algumas vezes para recuperação. Uma de suas obras retrata sua internação no Hospital Nacional de Alienados no Rio de Janeiro, entre 1919 e 1920. Quase uma autobiografia, “Cemitério dos vivos” narra as injustiças sofridas por aqueles que estavam nessa condição, como a do autor, marcada por tragédias pessoais. Lima Barreto morreria três anos depois.
Seu livro mais conhecido é “Triste fim de Policarpo Quaresma”, de 1911, que nos conta a história de um brasileiro visionário, ridicularizado por muitos. Ele tenta fazer do tupi a língua oficial do país, sofrendo, claro, um terrível fracasso. Depois de voltar de uma internação no manicômio, resolve incentivar a agricultura brasileira, que considera possuir terras imensamente férteis. Em sua propriedade, nenhuma plantação vingou, travando uma luta árdua contra as formigas saúvas. Por fim, Policarpo entra para a Revolta da Armada, apoiando o Marechal Floriano Peixoto, mesmo não tendo nenhuma experiência militar, e acaba mal após denunciar as injustiças presenciadas durante o conflito para o próprio Marechal.
Outro livro de grande destaque, que gosto sempre de indicar, é “Clara dos Anjos”. Finalizado em 1922, lançado postumamente em 1948, é uma obra que trata de racismo e preconceito, retratando vivamente os subúrbios da cidade do Rio de Janeiro do início do séc. XX. Clara dos Anjos tem dezesseis anos, é filha do carteiro Joaquim dos Anjos, mora no subúrbio carioca, em uma vida modesta, e se apaixona pelo violeiro Cassi, famoso em destruir casamentos e a vida de muitas moças da cidade. Clara engravida e é abandonada pelo seu grande amor, dizendo ao final para sua mãe que nessa vida não valemos nada, absolutamente nada. Uma obra prima que suscita questionamentos. Aliás, toda a obra de Lima Barreto aborda temas que podem ser debatidos hoje, mesmo tendo sido escrita há décadas.
Os livros de Lima Barreto podem ser encontrados em diversas bibliotecas país afora. Sua linguagem é informal, acessível, marcada por muita sinceridade e sarcasmo. Sua obra foi contemporânea à de Machado de Assis, sendo, por muito tempo, discriminada por tratar de assuntos de “gente do subúrbio”, com um estilo de escrita que não se comparava à “elegância” de Olavo Bilac. Demorou décadas para que Lima Barreto fosse reconhecido como um escritor ilustre da literatura brasileira, algo que ele nem presenciou em vida.
Outros livros ainda podem entrar na lista de recomendados, como “As aventuras do Dr. Bogoloff”, “Bagatelas” e o conto “Nova Califórnia”, que até foi inspiração para uma famosa novela na TV, sobre um alquimista que podia transformar ossos em ouro.
Lima Barreto não tinha meias palavras para descrever seus personagens. Era irônico, criticava os governantes, descrevia os subúrbios, as pessoas miúdas, os botecos vivos e decadentes, as vielas escuras da pobreza carioca. Uma realidade que podia ser a mesma de muitas outras cidades brasileiras. Fez o que muitos escritores de sua época não se arriscaram a mencionar. Pagou por isso. E nos deixou um legado de ouro. Ler um livro de quase cem anos e sentir na pele o gosto do tempo presente é, no mínimo, fantástico. De fato, um autor digno de ser lembrado pelos próximos cem anos.
Munique Duarte (Santos Dumont, Brasil, 1979). É jornalista, formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Lecionou língua espanhola por dez anos, tendo estudado no CELEC – Córdoba (Argentina). Tem textos publicados no Jornal Relevo, Jornal Opção, Revista Diversos Afins e Livro&Café. É idealizadora e apresentadora do Literatura na Rádio Cultura, em Santos Dumont-MG. É colunista da Philos com a sessão “Não deixe de ler”. Publicou recentemente o livro “Deserto e Asfalto” pela editora Kazuá.