Na contemporaneidade, impomo-nos desafios inimagináveis. Um arcabouço tecnológico de padrões inflacionários e valores desconhecidos, indefiníveis. Tratamos de conceituar ou pré-conceituar tudo que aconteça ou exista, sem qualquer base teórica ou empírica. Conjuga-se moral e existência baseando-se em interesses provincianos ou mesmo íntimos, mas tudo muito bem articulado e mascarado, buscando sempre a aprovação social porque apesar de tudo, o importante é ser aceito e aprovado por todo o equipamento virtual estabelecido.
Distante de toda essa postura do modus operandi atual, penso em nossos primórdios e em toda a linha do tempo percorrida pela humanidade. Identificada pela característica de autoafirmação pelo poder, e sendo este a real riqueza relevante ao homem, ele só o soube conquistar através das guerras e lutas sanguinárias. Marcou-se a humanidade por atribuir valor ético e moral a esse pseudopoder, instruindo-o com requisitos justiceiros para revesti-lo de justiça.
Tomado por exigência consciencial, a justiça foi buscada pelo homem num processo longo e complexo que tem início na mitologia grega e romana, protegida e defendida por Temis e Iustitia respectivamente, as deusas da justiça.
Interessante que o aspecto feminino tenha sido o escolhido para personificar a justiça. Será porque a ideia de justiça predominante no inconsciente coletivo da humanidade daquela época, estava fundamentada na Lei de talião: “olho por olho, dente por dente”, e só as características de amabilidade e proteção de uma mulher seriam capazes de alcançar o que se pretende justo?
Considerações hipotéticas a parte, o fato é que até hoje, o senso de justiça ainda não passeia pelos labirintos reflexivos do homem. Esse, com poucas exceções, acredita que a tarefa deve ser única e exclusiva do Estado e não se presta a participar efetivamente para a composição de uma estrutura fiel e justa no alcance definitivo da justiça.
Penso a justiça como uma entidade vivente, tendo como requisitos constituintes: o sentido, o valor e a verdade; postos a serviço do que é justo, do que é igualdade de direitos e deveres. Daquilo que se pode conceituar como possibilidade isonômica para todos, na medida das suas igualdades e desigualdades. Entretanto, esse viés metafórico está eivado por essência utópica, visto que a justiça não é capaz de fazer-se sozinha, tão pouco manifestar-se para definir a melhor aplicação de si mesma a cada caso concreto.
Portanto, cabe-nos o equilíbrio e a imparcialidade como está muito bem representada e sugerida pela simbologia arquetípica impressa na escultura figurativa. A balança aponta a necessidade do uso do equilíbrio sobre os fatos. A venda nos olhos demonstra que só com imparcialidade é possível o alcance de um resultado justo. A espada estabelece a força e o poder para fazer valer a decisão estabelecida. E por fim, mas não menos importante, a figura feminina como representante credora da mais fiel ação de sentido, valor e verdade.
Sócrates, diferente dos seus pares, afirmava “que a justiça é virtude e sabedoria, e a injustiça maldade e ignorância…” e que só é possível quando se aplica a universalidade sobre ela. Eu, de minha parte coaduno com o citado mestre, já que a universalidade é o melhor instrumento possível quando se pretende a aplicação íntegra de justiça. Pois não é possível o alcance do justo com diferentes fórmulas ou métodos aplicados a diferentes casos concretos. Há que se universalizar para o encontro triunfante de justiça. Apesar de os pensadores filósofos daquela época não se terem chegado a uma conclusão sobre a sua aplicabilidade.
Conjunturamente, onde antigos padrões estão sendo questionados, rasos valores estão demonstrando suas fragilidades, paradigmas inventados por uma sociedade insana e hipócrita estão rolando precipício abaixo, entendo que é o momento de se olhar verdadeiramente para dentro e buscar valores reais de sentimento e respeito igualmente verídicos.
Não há como estabelecer a aplicação fiel de justiça, num planeta onde a humanidade se mata, mata de fome e de sede, destrói a própria morada e prima por distribuição desigual das riquezas entre todos.
Um sistema corrupto, desumano e preconceituoso, não tem credibilidade para a aferição ou aplicação da justiça. Somente na inversão dos valores cruéis estabelecidos atualmente, ceifando Amor, respeito e o verdadeiro sentido de igualdade trazido de dentro para fora é que seremos capazes de começar a transformar para implementar a justiça social.
Em se tratando de sociedade justa, vimos que infelizmente estamos muito longe de alcançar padrões que sejam capazes de fundamentar eixos de êxito na construção de um Estado propiciador de uma governança com repartição equilibrada de riquezas, exploração consciente dos recursos naturais e distribuição real de tarefas no âmbito administrativo, político e jurídico, que imponha responsabilidades consequenciais, imparciais e sobretudo desprivilegiada.
Em todo o mundo, com exceção de alguns poucos modelos de países que atuam fomentando a felicidade do povo, através de administração plena, digna e honesta da res pública, governos corruptos assolam toda e qualquer possibilidade de evolução e ancoragem de uma política humanitária em sentido horizontal, capaz de propiciar igualdade de oportunidades e crescimento.
Governadores desconsideram o próprio motivo de existência do Estado, a sociedade e o indivíduo que a compõe. Planos maquiavélicos são traçados em rotas de guerra e de exploração em níveis muito acima da crueldade, extremamente desumanos. Os refugiados são tratados como um problema, homens, mulheres e crianças são deixados à deriva, para morrer de fome e frio. Nesse sentindo, penso no dizer de Maquiavel, quando discorreu sobre o principado, em seu livro “O príncipe”, “Todos os estados bem governados e todos os príncipes inteligentes tiveram o cuidado de não reduzir a nobreza ao desespero, nem o povo ao descontentamento.” Penso que Maquiavel percebeu a fragilidade de uma governança que não governa para quem o defere o poder. Dessa forma, o mundo está caminhando para um caos funesto e desolador.
Não obstante, existem possibilidades factíveis, plenas de resultados efetivos e justos, sociedades alternativas, planos de reconstrução de modelos de vida, projetos humanísticos para a educação, saúde, extração e uso de recursos naturais de forma limpa e regeneradora, ecovilas se multiplicam, forças de trabalho solidário não param de crescer, os processos econômicos inovadores começam a surgir em todos os níveis, com os crowdfunding, sistema de compartilhamentos e muitos outras possibilidades complementares que se instauram na base da pirâmide existente.
Percebo que o ser humano vem despertando pouco a pouco para o entendimento de que o modelo instaurado não será capaz de instalar uma mudança ou um paradigma igualitário, muito menos possível de implementar ações de relevância e justiça.
Um povo é constituído pelos seus valores e sentidos, requisitos que são adquiridos em estado familiar, social, educacional e cultural. A arte como pilar manifestador da cultura de um povo, tem papel imprescindível de alimentar a subsistência e a re-existência identificadora desse povo. Manifestar-se através da vivência cultural, é reafirmar sua identidade e sua essencialidade.
Os povos que não se organizam em prol de valorizar seu direito ao exercício desses princípios, estão fadados ao insucesso. Coesão social se estabelece na medida em que os grupos identificados por semelhanças linguísticas, territoriais, culturais ou econômicas se unem para estabelecer força construtiva e realizadora.
Sinto como se estivéssemos vivendo um tempo em que todo o padrão sócio-econômico-cultural estivesse sendo revisto, reeditado, questionado, tudo sendo remodelado. O homem sendo desmascarado, transparecido, tendo suas neuroses, vícios, amores, desamores, dores e conflitos postos e expostos de forma explícita. Nada fica por muito tempo velado, tudo vem à tona mais cedo do que imaginamos.
Retomo a fala de Sócrates, “só é possível o alcance da justiça, se esta se fizer em sentido universalista”, se for passível implementá-la com sentido mínimo de igualdade, mesmo que para tanto, todos tenhamos que abrir mão de um pouco para o alcance do bem comum.
Apesar desse cenário de invalidez crônica das igualdades, ainda sou parte integrante daqueles que robustecem o discurso e acreditam que é possível transformar as bases organizacionais, com a implementação de políticas públicas para a construção da coesão social com o propósito de estabelecer a inserção e a manutenção da justiça sobre toda a humanidade.
Coaduno com esse propósito de movimentação celular e ramificada que germina e cresce em todo o globo terrestre, ações inovadoras, criativas e transformadoras para a ascensão de uma nova Terra, um novo mundo e uma nova sociedade, mais unida e isonômica. Somente a partir da busca da igualdade pela justiça, seremos felizes em vivenciar a humanidade organizada em coesão social, plena e justa.
Lara Braga (Rio de Janeiro, Brasil). É advogada, servidora pública federal, poeta e compositora. Iniciou sua trajetória na área das artes na década de 1980, como aluna de Maria Clara Machado no Teatro Tablado. Casou-se duas vezes, atualmente é namorada. É mãe de Tiago e do Henrique. Lançará seu segundo livro de poemas, “Em poder” na Flip.