Decidi fazer tatuagens.
Todas que caibam neste 1,80 cm e possam ficar escondidas ou à mostra conforme minha vontade.
Comecei há muito e devagar.
Durante quase duas décadas, única estampa brotava do meu pé direito sem dar frutos. Duas flores solitárias que tinham por objetivo primeiro me lembrar de um momento específico da vida. Com o passar do tempo me acostumei e só pensava no real significado quando era perguntada. As flores perderam o brilho do conceito e passaram a fazer parte do meu corpo como qualquer outro sinal.
Virei a chave.
Hoje, desenhos vestem meu corpo e passeiam pela minha pele na intenção de contar histórias, exibir sentidos e alegorias do que me acontece no espírito.

Por causa de uma falha genética tenho uma doença.
Ela escorrega da mutação do cromossomo 3q21-24 e invade todo o corpo. É mais séria do que a atenção que lhe dedico. É menos grave do que já supus. Lutamos uma contra a outra. Ela insiste em me derrubar. Eu martelo em desprezá-la. Vamos vivendo.
Há um contencioso: a pele. Disputamos cada pedaço. Se ofereço cremes e óleos, ela invade com dores e pruridos. Enquanto dedico sedas e perfumes, ela ataca com mágoas. Se quero banheira morna com pétalas, ela joga cubos de gelo.
Avançamos pela vida, a duelar espaço único.
Desta interminável luta, todos os dias, novas cicatrizes aparecem. Mancham minha pele com a força de sujar minha vida. A cada novo sinal, a certeza de que terei que continuar vigilante e que para sempre, para todo o sempre, será a mutação 3q21-24 minha inseparável companheira.
Não gosto.

Resolvi que estamparei para o mundo os traços que eu escolher e não os que a doença rabisca sem nenhum talento em minhas pernas, braços, costas… faço tatuagem.
Faço tatuagem e grito que a escolha do que será desenhado em mim é minha.
Faço tatuagem e conto o que quero contar para não ter que falar de cicatrizes.
Faço tatuagem para disfarçar o problema.
É um jeito de ensaiar domínio e libertação para os males da vida.

Mas existe a grata compensação para o mal permanente.
Por causa do escorregão naquele momento dos suportes materiais da hereditariedade, pela falha no instante de minha divisão celular, minha doença me deu como indenização a fantástica sensibilidade em toda a tez. Do primeiro fio de cabelo ao dedo do pé, sinto todo o pano que me cobre com delicadeza e susceptibilidade.
Mora em mim um incrível poder de prazer.
Um gesto, uma pena, um algodão podem causar satisfação muito maior que em qualquer outro menos agraciado que eu. É nesta hora que junto as mãos e agradeço por ter estampa com marcas tão diferentes.

Os registros na minha pele me garantem, por exemplo, conseguir sentir em detalhes uma língua que desliza em meu braço. Papilas, saliva, aspereza, maciez, rigidez, suavidade; diferentes planos chegam a uma espécie de consciência que não os nomeia mas que os sente e deles tira o prazer que quem oferece nem sabe direito que tem.
O fenômeno deste deleite é tão incomum quanto a falha no cromossomo: sou uma em um milhão.
Se minha patologia faz de cada pedaço do meu corpo que encontra o externo meu órgão nervoso, aproveito-a. Me jogo em brincadeiras da carne, sozinha ou acompanhada, pelo prazer.

Na Divina Comédia, Dante Alighieri deixou que a luxúria se eternizasse num inferno menos assustador. Os pecadores da carne ficaram no segundo círculo, aquele do Vale dos Ventos.
O segundo círculo é o primeiro do inferno. O que está no topo, mais próximo da saída – da saída que não existe; da saída que se aproxima do limbo que está pertinho do céu; da saída que diz que a luxúria não é lá grande pecado.
Aos olhos de Dante, os libertinos não são tão maus como julgou São Tomás de Aquino ou Gregório Magno ou Isidoro ou qualquer outro a quem a Igreja tenha dado cartaz.

Gosto dos poetas. Há neles a permissão do amor. Amor de qualquer tipo, incluindo aqueles que ultrapassam as linhas do romântico para caminhar até a pele, a carne, a saliva. Como a cadela que Vinícius de Moraes descreveu na moldura da cama. Ou como a língua de Drummond que lambeu as pétalas vermelhas da rosa pluriaberta. E tantos outros que percorreram letras como quem desliza as mãos atrás das surpresas que, mesmo sabidas, repetem o espetáculo da primeira comoção. Gosto, como Hilda Hilst porque há desejo em mim, é tudo cintilância.

Penso no conceito da mulher bem resolvida do meu tempo. Aquela que depois de queimar mil sutiãs resolveu encontrar o prazer fácil e sem obrigações no bar que frequenta, no pau-amigo, na compra de afago, nos relacionamentos sem compromisso emocional. Há oportunidades de sobra para isso e testar cada método com as farturas de que a carne gosta não é exatamente um problema.
Delicioso, o sexo sem amor.
Por tudo que ele oferece deveria ser o pregado pela humanidade. A praticidade talvez seja a melhor de suas qualidades: combinação prévia, banho depois e está tudo resolvido. Assim desta forma crua, rasteira, trivial. Sem danos, mortos ou feridos, satisfaz e custa quase nada diante do benefício.
Por causa deste pensamento, conheci pessoas e me aventurei em algumas camas.
Desnecessário o rótulo do relacionamento para que o corpo frua.

Mesmo ainda que meu primeiro pensamento sobre sexo esteja acompanhado da palavra prazer e não da ensinada amor, certas prontidões não correspondem às complexidades que carrego debaixo das unhas. Preciso de mais porque preciso de tudo. O tempo inteiro. Não há intervalos para o amor.
Mas entre morrer de amor e morrer de prazer, fico com o segundo.

Não caminho pelos extremos, não gosto. O precipício me assusta. Recuo.
tenho uma, apenas uma, perversão não absolvida pelos conceitos morais do momento: o desejo de castidade.
Por muitas vezes penso sobre isso e quase sem freio uma vontade imensa de praticá-lo cresce em mim. Uma forma de transgressão intensa, porque foge dos instintos animais para me alinhar num corredor em que todas as práticas se fazem pela força intelectual.
A vida casta proporciona outros tipos de paixões – que talvez por isso sejam também tão atraentes e tentadoras. Abandonar os prazeres da carne para me concentrar num lugar onde a vida seja de leituras e reflexões me parece o avesso tão completo da condição de humana que acaba se transformando no maior delito possível de colocar em prática.
Em épocas consigo chegar a isso. Mas me sinto pecadora, imperfeita, amputando a integridade de toda minha natureza, domando impulsos e me tornando dona de um corpo que acaba sem vontade própria. Domínio.

Mas o corpo grita. Libertação.

O meu flerte com o sexo não é cotidiano nem doentio, eu acho. Mas acontece, objetivo único, pelo prazer, para deslizar pela sensualidade, ser libidinoso e se derramar sem outro motivo que não seja apenas o fruir.
Com isso, caminho numa eterna corda bamba em que não posso me deixar tombar para nenhum dos lados. Inferno de Dante: ando numa trilha muito estreita, de um lado o despenhadeiro e o medo de cair num vento aterrorizante sem fim e de outro, um paredão em chamas, qualquer deslize e torro irremediavelmente.

Este equilíbrio, escrevendo assim, parece ter ares sérios, compenetrados, quase didáticos. Entretanto a prática é coisa voluptuária, dissoluta, mais leve e livre. É a vida, e todos os apetites sensuais.
Como em todos os assuntos recheados de complexidades, aqui, eu posso dizer, sem que isso seja verdade definitiva, que é na cama que a vida acontece.
Porque escrevo e pratico meu próprio evangelho, é na cama, quase carpocrática, que a vida acontece!


Adriana Sydor (Rio de Janeiro, Brasil). Colunista de música e comportamento político na Revista Ideias; editora da Travessa dos Editores; ministra oficinas e palestras sobre Música e Sala de Aula. Foi coordenadora de atualidades da Tecnologia Educacional – Positivo Informática e diretora das emissoras de rádio AM e FM e-Paraná. Publicou Coleção MPB para Crianças, Toda prosa, Salve o Compositor Popular e Sete confissões capitais e outros pecados.

Publicado por:Philos

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