A música, a passagem do tempo tornada audível através de elementos sonoros (The living work, Suzanne Langer p.133), é praticada em todas as culturas humanas sem exceção, desde as sociedades sem escrita até às mais desenvolvidas.
Tal evidência propõe um enigma porventura insolúvel. A que necessidade de Homo sapiens sapiens ela provê? Rousseau fez ascender a origem da linguagem ao dom de praticar a música.Tal como a linguagem, a música, a criação de mitos e a produção de substâncias intoxicantes aparecem como atributos universais da atividade da espécie, onde e quando quer que ela pode ser observada. O mais antigo instrumento musical conhecido está exposto no Museu Nacional da Eslovênia, uma flauta neandertal construída a partir de um fragmento de fêmur de urso das cavernas, com cerca de 47 000 anos. Outras 30 flautas foram encontradas provenientes do Paleolítico superior, uma das quais, em Hohlefels, na Alemanha, que revelou ter sido construída a partir do osso de uma asa de abutre. Em grutas paleolíticas habitadas por espécies humanas anteriores à nossa, e depois frequentadas por populações de homens modernos – como Nerja, na Andaluzia – foram identificados também litofones, instrumentos naturais de percussão formados nas grutas pelas colunas das paredes calcáreas, observando-se mesmo os pontos de impacto percussivo.
As teorias científicas sobre a origem da música, de caráter necessariamente especulativo, visam a englobar os seus aspectos essenciais numa chave geral de explicação: seu caráter acústico, o fato de poder ou não ser semantizada, o movimento e a mímica necessários à sua prática e aqueles fundamentos estruturais que são o ritmo, a melodia, a harmonia e a forma. Sendo um comportamento intencional, desempenha funções sociais, ligadas tanto à religião como à coesão do grupo, comunica emoções e pode induzir a certas condutas.

Entre tais teorias, uma das mais persuasivas é de autoria do australiano Richard Perncutt, professor de musicologia sistemática, hoje activo na Universidade de Graz, na Áustria. Parte ele do princípio de que a fala cantada das mães dirigida aos seus infantes, característica universal das culturas humanas, constituiria a origem adaptativa da música. O aumento do cérebro humano resultou em que o gênero Homo, há um a dois milhões de anos antes do presente, adaptou-se no sentido de natalidades cada vez mais precoces, com nascituros muito frágeis e dependentes para a sobrevivência de uma ligação forte com a figura materna, o que criou a necessidade de desenvolvimento de um meio de comunicação de poderoso efeito vinculativo, tanto emocional como intelectivo. A fala cantada das mães, em inglês denominada motherese, seria um estágio intermediário entre linguagem e música, reunindo características de ambas.
Há comprovação empírica para a natureza musical da língua cantada de maternage e as habilidades musicais dos infantes. Um feto começa a distinguir sons aos 4 meses a partir da concepção: ouve a voz, os passos, a batida do coração e ruídos da digestão materna, que fornecem informações sobre o estado emocional da mãe. É lícito pensar, com base em verificações empíricas, que a primeira inteligência do infante é de natureza musical.
Se aceitarmos como verossímil a teoria do Professor Perncutt, o vínculo entre música e religião, comprovado em todas as culturas conhecidas, se desenvolveria a partir da forte experiência de conexão à mãe vivenciada pelo infante, que ainda não tem noção de si como ente separado, ao ouvir, entender e emocionar-se com o Sprechgesang (fala cantada) materno. Tal vivência proporcionaria o modelo fundacional da procura de contacto emotivo com a divindade, que caracteriza o pensamento e a prática religiosa. A posição fetal que caracteriza a postura dos fiéis em oração, com os joelhos dobrados, a localização da divindade sempre no alto firmamento, é mais um argumento para essa interessante conjectura.

Une philosophie pour les sciences existe. Il n’en existe pas pour la poésie.

O mesmo se pode dizer com relação à música? Até certo ponto sim, apesar da ingente quantidade de textos reflexivos sobre a música desde a Antiguidade grega. A partir de Pitágoras, no século sexto antes da era cristã, que formulou as leis básicas da acústica, com a descoberta das relações numéricas entre as frequências sonoras, continuando com o Sectio Canonis, atribuído a Euclides, e o Elementa Harmonica, compêndio descritivo de Aristoxenos, discípulo de Aristóteles, obra de caráter essencialmente empírico e a única entre as suas cerca de trezentas a sobreviver até aos nossos tempos.
A música estava no centro da cultura grega, tendo fornecido aos filósofos da escola de Pitágoras o próprio mode

modelo da ordem do cosmos, a partir da ideia da harmonia entre os sons (harmonia mundi). Na poesia épica e lírica, na tragédia, a música era ingrediente tão constitutivo de tais gêneros como a palavra. Nelas, tanto como no Sprechgesang materno, o conteúdo intelectivo e emocional apareciam estreitamente vinculados através da música.
Os modos gregos eram variantes regionais das escalas que dividem a oitava musical em oito sons, construídos a partir de dois tetracordes, onde variava a nota inicial e a posição dos semitons. No tratado de Aristoxenos constavam as descrições de afetos e emoções a que cada um dos modos era mais apto a ilustrar. A música era, pois, estudada como ethos, ou seja, como repositório de valores éticos. O modo dórico era considerado paradigma para a virilidade, a força e a coragem. Já o frígio era considerado próprio a sugerir estados extáticos e emocionais, enquanto o modo lídio proporcionava a sensação de intimidade e podia criar atmosferas lascivas. A música comportava então – e até nossos tempos – uma ética. Ilustremos esse aspecto com um fragmento A República (III.p. 398):

«(…) Nous avons dit que les plaintes et les lamentations n’avaient pas de place en nos discours. – Acune place, en effet. – Quelles sont donc les harmonies plaintives? Dis-le moi, puisque tu es musicien. –C’est la lydienne mixte, dit-il, la lydienne aigüe, et quelques autres semblables. – Eh bien, ces harmonies-là ne doivent-elles pas être rejetées? Elles sont pernicieuses même pour les femmes, que le devoir oblige à une tenue convenable, et à plus forte raison pour les hommes. – Je suis tout à fait de cet avis. – Il faut dire aussi que rien ne messied plus aux gardiens que l’ivresse, la mollesse et la paresse. – Sans contredit. – Et quelles sont les harmonies qui sont molles et faites pour les buveurs? – Il y a, dit-il, une sorte d’harmonie ionienne et une de lydienne qu’on appellee lâches. – Eh bien, mon ami, vois-tu quel usage on peut en faire pour des guerriers?»

A primitiva Igreja cristã relutou nos seus inícios em conservar na sua prática litúrgica o lugar eminente que a música ocupava na cultura grega, para se diferenciar claramente do mundo pagão, mas logo se viu obrigada a ceder-lhe um lugar de comparável centralidade. Os modos gregos foram adaptados para a música cantada nas igrejas, o canto chão, e reservados às vozes masculinas. Depois da grande reforma de Gregório Magno, que fundou a Schola Cantorum, normatizando as diferentes práticas de canto chão regionais, o a partir de então chamado canto gregoriano floresceu, sem uma intenção propriamente artística, visando o recolhimento e a elevação dos fiéis. Era desencorajada pela Igreja a criação de música profana.

Com a proibição de um certo intervalo, a quarta aumentada, denominada diabolos in musica, (considerações éticas de novo trazendo limitação à prática musical), os modos eclesiásticos desenvolveram-se no sentido da tonalidade, maior ou menor, influenciados pela música mundana dos ‘troubadours’, medida ritmicamente e em língua vernácula. Assim chegou-se ao sistema tonal que prevalece na música ocidental desde há cerca de quinhentos anos, até o advento do atonalismo no início do século XX.
Durante a Reforma voltaram os cerceamentos à música por motivos éticos ou litúrgicos. Para evitar que as palavras dos cânticos (em vernáculo) não fossem bem compreendidas, Calvino proibiu a polifonia no culto:

«Les chants et mélodies qui sont composées au plaisir des aureilles seulement, comme sont (…) les chants à quatre parties, ne conviennent nullement à la majesté de l’Église et ne peut se faire qu’ils ne desplaisent grandement à Dieu».

«Os cânticos e melodias que são compostos para o prazer das orelhas somente, como são (…) os cânticos a quatro vozes, não convêm de modo algum à majestade da Igreja e é impossível que não desagradem grandemente a Deus».

Até o século XI, os intrumentos musicais utilizados no culto eram semelhantes aos empregados na cultura greco-romana. Só a partir daí, e até o século XV, foram paulatinamento introduzidos os instrumentos de corda, a harpa, o alaúde, o tympanon, as flautas,as trompas, o oboé, o trompete e o órgão. O que não agradava de todo ao gênio severo de Calvino: «L’invention de la harpe et autres instruments servent plutôt à volupté et délices qu’à necessité». «A invenção da harpa e outros instrumentos servem antes à volúpia e delícias que à necessidade».

Como se vê, os talibans ou islamistas radicais não inventaram algo novo.

Há que realçar o papel de Martinho Lutero, que trouxe para a liturgia luterana a prática dos corais polifônicos, cantados não apenas pelo sacerdote, como no catolicismo, mas pela congregação de fiéis durante o ofício divino, e o de Johann Sebastian Bach, que normalizou a divisão dos 12 semitons da escala cromática através do Cravo bem temperado. Da excelência da música polifônica alemã a partir de JSB deriva sem dúvida o aforismo irônico de Émile Cioran: «Se há alguém que tudo deva a Johann Sebastian Bach, é Deus. Se não fosse Bach, Deus seria um personagem de segunda fila.» (EC, Sylogismes de l’amertume, p.).

Paradoxos da música

A música contém uma polaridade essencial: de um lado, o seu aspecto racional, puramente acústico, medido matematicamente no ritmo e na relação entre os intervalos, e científico nas regras da harmonia e da forma. Na Antiguidade grega e até ao Renascimento a música era estudada como ciência. Do outro lado há o seu aspecto de representação emotiva, ou seja, para utilizar uma expressão de Warburg citada por António Guerreiro, a sua capacidade para constituir «a representação mágica da vida» (in A.Guerreiro, O demónio das imagens, p.100).
Podemos porventura importar algumas ideias de Aby Warburg sobre as imagens, desenvolvidas na sua iconologia, para analisar alguns aspectos pertinentes à música. Como as demais artes, a música alimenta-se do conflito entre logos e pathos, como dissemos acima, ou, se quisermos, entre o apolíneo e o dionisíaco. Move-se «entre a emoção primitiva e a reflexão que pretende dominá-la.»(A. Guerreiro p.18) Tal polaridade é, para Warburg, uma categoria interpretativa de todos os fenômenos culturais, refletindo a tensão entre o olímpico e o demónico.
Nessa perspectiva, a música destinar-se-ia a conjurar as perturbadoras emoções humanas, estabelecendo uma distância racional (o Denkraum warburguiano) entre o indivíduo e os seus sentimentos de pânico diante da ameaça da morte, da penúria, do abandono. De um lado teríamos a lógica e a razão, e do outro, a magia e a religião. A partir daí Warburg adverte: «É sempre preciso salvar Atenas de Alexandria…» Ou seja, resgatar através do logos os inescapáveis impulsos humanos de buscar proteção à incerteza e à impotência diante do destino na magia e no ocultismo.
É num opúsculo de Giordano Bruno intitulado Arte da magia, traduzido do latim por Rui Tavares (p. 92 ) que encontramos uma interessante formulação sobre a arte musical aproximada à magia, arte que visaria, segundo ele, criar um “vínculo múltiplo dos espíritos”. Sobre a capacidade da música influir e incitar a certos comportamentos, escreve o pensador de Nola: “Tem pois origem na arte encantatória, e nesta espécie de vinculação do espírito feita através de cantos e fórmulas mágicas, tudo aquilo de que tratam os oradores cujos propósitos são persuadir, dissuadir ou insinuar emoções». (p.109).
Levando mais longe a apropriação das ideias de Warburg para as imagens, reconheceríamos também na música os Pathosformeln por ele propostos (fórmulas de pathos) que, enraizados na tradição histórica e na memória, teriam uma posteridade (Nachleben) eficaz. A análise de Pathosformeln na música ocidental nos levaria a um estudo demasiado técnico para o nosso objetivo. Metaforicamente, porém, o pathosformel postulado por Warburg para as imagens seria, por exemplo, “la petite phrase” da Sonata de Vinteuil, na obra de Proust. A cada audição da sonata, ao ouvirmos a volta do motivo gravado na memória desde a sua audição inicial, seríamos tomados pela emoção do reencontro. Cada volta do fragmento musical lembrado tem o dom de comover-nos.

Um parêntesis para lamentar aqui o desaparecimento, a perda quase integral de toda a música grega, da qual temos tanta notícia teórica, pelos tratados, e nenhuma impressão auditiva.
Outro paradoxo intrínseco à música é o ela ser ao mesmo tempo sucessiva e simultânea. «A música é vivida existencialmente como um presente em que se atualizam, a cada instante, um passado já dado e recebido, e um futuro possível, esperado, exigido, desejado, temido.» (Jeanne Hersch, Tempo y Música, p. 22 e seguintes). «Este presente que misteriosamente dura, sem anular o contraste entre passado e futuro, é o que mais se parece, no viver humano, a uma miniatura de eternidade.” (p.23)
E ainda outro paradoxo : a música pressupõe a liberdade de invenção, contanto que obedeça a um conjunto de regras canônicas, ou seja, exige uma liberdade obediente. Nas palavras de JH, a “liberdade pode definir-se como obediência absoluta a regras criadas ou recriadas para sua prática”. (p.24). Ou, ainda na mesma linha de pensamento: «A liberdade mais livre coincide com a necessidade ou com a obediência às leis que ela própria cria. Daí a liberdade inflexível de Antígona, a de “obedecer às leis não escritas dos deuses” (Sófocles) Há que sublinhar, no entanto, que entre as 48 fugas do Cravo bem temperado de Bach, nenhuma delas obedece integralmente às regras fixadas no seu tempo para o gênero.
Articulada como uma linguagem, embora não possua semântica, a música, esse curioso presente «denso de passado e de futuro» (Jeanne Hersch) pois reúne o passado e antecipa o futuro, esse « pequeno “agora”que não desaparece, e do qual a eternidade se torna cativa por um instante, como o céu refletido numa poça d’água, enquanto a frase já ouvida se precipita no passado próximo» (p. 18) viabiliza tanto a excitação dionisíaca da multidão como a elevação mística à ideia de Deus, tanto a rememoração emotiva de dramas afetivos, como a sugestão da graça e de esfuziante alegria rítmica.
Semantizada, como nos toques militares, ela pode alterar o destino das nações, como no caso do corneteiro na batalha de Pirajá, na Bahia sublevada contra a independência do Brasil em 1823. O fato curioso sobre essa batalha está citado por Tobias Monteiro em seu livro A elaboração da independência. Ocorreu durante um episódio no qual o Major Barros Falcão, que comandava as tropas brasileiras, dera a certa altura ordem de retirada. O corneteiro Luís Lopes, portugês que lutava ao lado dos brasileiros, substituiu por conta própria o toque de retirada para o de “cavalaria, avançar e degolar”. Os portugueses, assustados por tal movimento (que era impraticável, já que não havia cavalaria brasileira na batalha), entraram em pânico e recuaram, permitindo a decisão da batalha às tropas brasileiras.
Noutro registro, algo mais elevado, vale a pena citar em torno da música puramente instrumental – fenômeno recente na música do Ocidente – o famoso fragmento 444 de Friedrich Schlegel, em seu Athenäeum:

«Quem tenha sensibilidade para a maravilhosa afinidade entre todas as artes e as ciências não deixará de pôr em questão a opinião corrente e superficial segundo a qual a música mais não seria que a linguagem dos sentimentos. Perceberá, com efeito, que não é ilícito reconhecer a tendência de toda música puramente instrumental para a filosofia. Não deve a pura música instrumental criar ela própria o seu texto? E não é verdade que o seu tema há de ser desenvolvido, confirmado, alterado e contrastado da mesma forma que o objeto de reflexão numa série filosófica de ideias?»

Para terminar, ainda um paradoxo essencial, na formulação de Jeanne Hersch (op.cit p. 39): «Se a música transcende o tempo, isto significa que ela nos permite alcançar, de forma (…) misteriosa e intangível, algo que a humanidade sempre sonhou e que lhe é totalmente negado, ou seja, algo que seria ao mesmo tempo a capacidade de desejar e a de alcançar a plenitude.» (p. 45).


Gilda Oswaldo Cruz (Rio de Janeiro, 1938), pianista e escritora. Publicou o romance Na sombra do herói (Topbooks 2010) e a fábula para a juventude O caso do amendoim roubado (2017 Jaguatirica). Reside em Lisboa.

Publicado por:Philos

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