SAUDADE

abro o frasco da memória e ela sai sinuosa
se expande
toma o espaço ao meu redor
ganha o contorno do ar que me alimenta os olhos
inunda a casa e minha manhã de lembranças
[as ruas os objetos os cheiros
os rostos as moradas do passado
saltam de lá e nadam vivos em minhas retinas]
ela, a memória, se veste de assombro e música
e, com garras negras, desenha em meu corpo
o que se perdeu no território dos anos
ela me tira para dançar
e meu descompasso sôfrego
tropeça em um vão do tempo
evoca um silêncio pêssego
faz trincar um espelho baço
dispara um gatilho verso
[minha saudade é um poema emoldurado]

PARTO

tenho um poema
atravessado em minha garganta
não quer vir à tona
pois teme a superfície
tento puxá-lo
à força
a fórceps
mas ele não quer nascer
tento vomitá-lo
mas seus sapatos ficam agarrados
à beira de um grito estancado
o silêncio me engasga, me esmaga
então cuspo
um gosto de verso espremido
o poema está asfixiado
preso num gemido
tento arrancá-lo
à força
à fala
à flauta
e ele
não vem
mergulha
cada vez mais
“fundo sem fundo”
tento pinçá-lo com os olhos
mas ele
escorrega
na gelatina de minhas flácidas retinas
e cai
no abismo
da noite


Hélen Queiroz (Minas Gerais, Brasil). Poeta, professora de História, doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Recebeu o Prêmio Off Flip de Literatura nos anos de 2009, 2010, 2013 e 2014.


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Publicado por:Philos

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