Assiwajú

No chão faiscado a machete,
na pele curada a navalha,
no crânio riscado de waji,
cada traço-caminho abrange
um mapa de andarilhar,
de, em curto-circuito, cruzar
o desvio que, lábil, a/talha,
por onde o essé se mete,
por onde o odú se repete,
por onde o ejé se espalha.

Tudo o que a boca come

Santo também come.
Exu é santo, mas nem tanto.
De santo só leva o nome.
De tudo o que a boca come, come Exu.
Carne, azeite, farinha e ainda mais.
Uma vez, dizem os antigos,
até os próprios pais.
Se cozido, se morno, se cru,
Enugbarijo, a boca coletiva,
prova de cada axé um quanto:
sangue, suor, saliva.
Cada prato tem sua bula,
seu fundamento, seu (en)canto,
lá do tempo dos tatara,
do negro malê, negro banto.
Na nossa nação, haja gula!
Gamela vazia não para,
que a fome do mundo é urgente
e a sangria desatada.
Desde que me entendo por gente,
deburú é que a tudo sara.
O pouco com Deus é muito,
o muito sem Deus é nada.
O pouco que se tem serve:
caruru é de lei, manjar doce
— só conto porque tu é precoce —
aí é que a festa ferve!
Acarajé: hambúrguer de africano,
na mesa do egbê, só é um pano
arriado sobre a dississa.
É tudo comida mestiça
do abc de minha avó.
Omolocum de feijão fradinho,
às vezes eu mesma cozinho,
faz um cheiro gostoso que só.
O que mata a fome dá sede
e tem otin, se Legba pede.
Mas coitado de quem faça troça:
olha, o sistema cá da roça
é de quase nenhum trelelê.
Eu pouca coisa sei por mim,
o mais que alembro foi assim,
no bater do pajubá, feito agora.
Quem bem ouve, menos chora.
Então, escuta essa velha egbômi,
meu filho: santo também come.


Thiago A. P. Hoshino é professor e pesquisador de antropologia do direito e das religiões afrobrasileiras. Descendente de retirantes nordestinos e japoneses atualmente radicado em Curitiba, toma a herança de suas famílias de sangue e de santo como material poético. Ainda, é filho de Nkassuté Lembá do Abassá de Xangô e Caboclo Sultão e co-organizador do livro “Direitos dos Povos de Terreiro” (Eduneb, 2018).

Publicado por:Philos

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