repetições

Caminhei como se fosse tomar
o último trem para Londres
e sob as nossas cabeças, sob as copas das árvores
e os telhados das casas pairava o silêncio
e sob o silêncio pairavam os aeroplanos com as armas
e sob as armas pairava a guerra
caminhei e sob os meus pés se abriram fendas
desprenderam-se rochas e sob as rochas as mesmas vontades
que me acompanhavam em minhas derrotas
e sob o relógio sob o pêndulo sob o tempo sob os bolsos do meu sobretudo antigo sob as águas do rio Ouse e sob o peso que quase insistiu em flutuar a necessidade de me revolver sob a tormenta
de por um ponto final em cada históriaNo banho toco a superfície
a nudez que guardamos sob a pele
libera nuvens de ar
se desprendem do corpo
invisíveis nuvens
e a espuma do sabonete que me torna escorregadia
e as bolhas, nuvens, e o branco da espuma, nuvens
nuvens que hipnotizam no ar
em meu habitat convidam-me a reunir-me a elas
no céu do Rio de Janeiro
na luz de outubro de 1983
A morte me acompanha
se repete na estrada
meu pai, meus irmãos, minha neta
minha outra neta
minhas guerras
minhas palavras
os animais feridos
correm, voltam por este mesmo caminho
as palavras também correm
ou mesmo morrem
sem encontrar maneiras de se fazerem compreensivas
e tudo que me resta na manhã ensolarada
da cozinha do porão dos livros que não mais interessavam
da pacata vida atormentada de Ketchum
é realizar a última caçada


Itamar Vieira Junior (Salvador, Bahia, 1979). É escritor, geógrafo e doutor em Estudos Étnicos e Africanos. Sou autor dos livros de contos “Dias” (Caramurê, 2012) e “A oração do carrasco” (Mondrongo, 2017).

Publicado por:Philos

A revista das latinidades