uma jovem que brinca com os segredos do Futhark

há sempre um olhar verdadeiro que do espelho de outro corpo retorna
empoçado pela alegria das máscaras suavemente derrubadas
susto de pássaro que abre as asas além da gaiola aberta
(liberdade de um silêncio em que cabe o preço de viver num mundo roto)
há sempre as palavras que saem de dentro das mãos de duas pessoas
e viajam distâncias pelos cabos de aço que sustentam os pensamentos
aquelas que ligam os pontos de um roçar de pele
carinho que se ensaia no vão do tempo ignorado pelas catástrofes
(generosidade entre aqueles que só se pressentem quando a escuridão diária dos equívocos se retrai)
há sempre os ventos que atropelam as mudanças e capotam nas estradas
nos céus embrulhados de branco por nuvens estratos
que anunciam chuva rala sobre a terra seca
(ainda que da claridão só se tenha a promessa de um dia derradeiro de felicidade autêntica)
há sempre a semente que brota quando ninguém mais está olhando
embora ela adormecida tenha existido nos buracos habitados pelos deuses da cura
aqueles que protegem as crianças e os adultos
(da morte desavisada pela queda acidental no abismo da ignorância)
há sempre a suspensão de Odin em Yggdrasil
testemunhando que são dos hiatos desesperadores que brota o conhecimento do vazio
há sempre o salto da fé em Kierkegaard
demarcando que quando os parênteses se fecham é que o período da existência volta a acontecer
e a realidade acontecerá mesmo que por ora esteja adormecida
no bojo de um sonho do qual se acordará sorrindo
em uma manhã rosada de domingo
quando no borrão das multidões dois rostos de íris castanhas se reconhecerem
portados por dois corpos aquietados pelas sementes de ontem
já florescidas e entremeadas em suas costelas
lírios dourados de sol
signos de um amor cultivado sob o escudo da entrega aguerrida
e da tranquila luminescência.


Cintia (Rio de Janeiro, 1986). Escritora dos livros: “corpo de areia” (poesia, ed. urutau), “antologia de poesia brasileira contemporânea” (ed. chiado) e “o ato de engolir pedras” (romance, amazon). vencedora do prêmio FEUC de 2005.

Publicado por:Philos

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