O caos habitava a cidade, com crimes indecifráveis, violações, mortes, violências banais e impunidade. A poeira se espalhava por tudo, o cheiro de carniça e podridão dominava o ambiente. As moças não mais podiam sair às ruas. O lixo se acumulava. Poucos arriscavam andar pelas ruas. Nem mesmo policiais transitavam sozinhos pela cidade. Saíam sempre em grupo, fortemente armados, muito atentos, não permitindo que ninguém se aproximasse das viaturas.
Toda profissão era perigosa. Faltavam alimentos nos poucos mercados que se mantinham abertos. As ruas lembravam as de uma cidade fantasma, abandonada por seus moradores. Sabia-se que não era. Um novo corpo logo surgia jogado em algum canto, um novo veículo queimado, uma nova lixeira que transbordava lixo fétido.
E naquela sala subterrânea, um “bunker” escondido que só se chegava após cinco mudanças sucessivas de escolta e múltiplos trajetos – o protocolo mandava que a saída ocorresse do palácio do governo. Da primeira parte do itinerário, apenas o Inspetor Chefe da Polícia local tinha conhecimento. Era ele o responsável por designar os vinte e cinco policiais envolvidos na operação de escolta e segurança. A segunda parte do trajeto ficava a cargo do Serviço Secreto do Gabinete de Proteção a Chefes de Poder, órgão classificado como ultrassecreto e criado para proteger os dignitários sobreviventes. O procedimento operacional padrão adotado naquela situação era rígido. E todos os cuidados foram tomados para que nenhuma falha prejudicasse a segurança dos envolvidos ou a tranquilidade do local onde a reunião ocorria – os três discutiam e refletiam sobre o que fazer.
Há dias, eles estavam ali, isolados do mundo, tentando pensar ou achar o que fosse uma saída para a situação em que a sociedade se encontrava. O bunker tinha estoque de alimento e água para até 10 pessoas, por aproximadamente 300 dias. Mas os três sabiam da urgência da decisão. Tinham que fazer! E não lhes fora permitido levar seus familiares, os quais continuavam desprotegidos e em perigo lá fora.
O mais novo era o mais resistente à proposta, mas nada melhor lhe vinha à mente. Temia por seus filhos, que sequer existiam no mundo ainda. À época, os filhos já eram poucos na humanidade, mas foram décadas de reprodução descontrolada que deixaram a cidade daquele jeito. Contudo, ele sonhava com um mundo melhor, com algo possível, com uma retomada da bondade. Princípios cristãos ainda lhe comoviam, mas passavam a ser vistos apenas em aulas de história, via ensino a distância. Poucos colégios resistiram aos ataques dos grupos de arruaceiros que depredavam e incendiavam tudo. Sua alma era boa por natureza, tinha aversão ao mal e o mundo como se encontrava lhe provoca enjoo. Mas ele não conseguia encontrar qualquer novo caminho para a cidade.
O mais velho dos três também guardava muitas dúvidas em seu espírito, mas, sob uma perspectiva pragmática, defendia firmemente a necessidade de a medida ser implementada. Não era o caminho que desejava, não era o que tinha sonhado para sua vida, não gostaria de tomar aquela decisão como governante. No entanto, outro caminho não lhe restava. A sociedade daquele lugar chegou à borda do precipício. Sua experiência lhe ensinou que, nesses momentos, apenas medidas enérgicas e contundentes podem mudar o rumo das coisas e impedir a queda. Não restavam alternativas. Precisavam decidir. Muitos dias já tinham se passado.
As conversas duravam horas, entravam noite adentro. As discussões já se arrastavam demasiadamente. Toda população esperava a decisão daqueles três homens. Protestos de grupos organizados e de pessoas solitárias dominavam as redes sociais. Todos acompanhavam o desenrolar dos trágicos acontecimentos.
O terceiro dos homens era o mais sóbrio dos três. Para ele, o que precisava ser feito deveria ser feito. Não existia qualquer sentimentalismo possível naquela situação. Situações extremas exigem medidas extremas. Era só.
“A sombra do vale da morte já nos cobriu. Já não enxergamos por um instante sequer a luz do sol. A bondade já não existe neste mundo. Resta-nos apenas um mal menor para nos salvar do mal completo, profundo e irrestrito” – costumava dizer o terceiro dos governantes.
Então decidiram. O Código Penal continuaria o mesmo em todos os lugares, mas seriam incluídos dois novos artigos em seu início:
Artigo Supremo – Todo cidadão de bem deverá portar uma arma de fogo fornecida pelo Estado, 24 horas por dia, 07 dias por semana.
Artigo Supremo Corolário- O cidadão de bem que presenciar um crime e não justiçar o delinquente imediatamente será ele punido com a pena de morte sumária, decretada pelo oficial da força de segurança mais próxima.
Estava feito. A decisão possível foi tomada. Eles seriam reeleitos pelos ricos que conseguiam ir votar. Os desejos foram todos atendidos. A população encontraria paz. Almas foram retomadas e conquistadas.
Rafael F. Vianna (Curitiba, 1990). É Delegado de Polícia, formado em Direito pela Universidade Federal do Paraná, mestre e doutorando em Ciências Jurídico Criminais pela Universidade de Lisboa. Possui quatro livros publicados.
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