O conto O mármore rouba o calor das solas dos pés faz parte da antologia Cem anos de amor, loucura & morte (Editora Moinhos), lançada para celebrar o centenário do livro Contos de amor, de loucura e de morte, do escritor uruguaio Horacio Quiroga.
Naquele dia, Alícia estava ocupada, morrendo. E levantou da mesa do escritório sangrada, morta e sazonal: uma lua eclipsada, um sol em cisão, vestida com um terninho púrpura. Enquanto ela escorria na rubra força vertida, chegou a pausa para o almoço. O botão foi pressionado até que o elevador, vindo do 6º, do7º, do 8º, parou no 9º. Antes de entrar, verifique se o mesmo encontra-se parado no andar – ralhou a placa-mãe do corredor.
Não havia um MESMO parado ali no andar, nem o oco de um precipício atrás da porta. Ela, que não temia a morte pelo fato de já morrer a toda hora, desceu na verticalidade, em flutuante atmosfera inox, até o alcance do solo. Já terrestre, nas calçadas, seus saltos alternados faziam percussão, e da melhor qualidade. Entre um toc-toc e outro:
– Só viverei quando eu deixar de morrer todos os dias. É um acabar sequencial ao qual eu me ocupo. As grifes são providenciais, assim como os meus saltos altos, pra esse morrer sem fim marcado pelo calendário linear.
Pensamentos deglutidos 20 minutos antes das refeições preparam o estômago para uma boa absorção das proteínas, dizem os especialistas.
As vitrines a impulsionavam, os lambe-lambes a orientavam: “não há o que Temer”, mas ela estava, de verdade, atemorizada. Os lambe-lambes visitavam os seus olhos na frequência dos seus passos rápidos rumo ao restaurante de filas lentas. Os lambe-lambes, portadores das mensagens das minas, carregavam verdades: eles são o livro sagrado das ruas e das mulheres. Os postes são os púlpitos; os muros, as tábuas da salvação. É preciso saber ler as cidades, os sinais por elas emitidos, assim como os passos de todos. As cidades são fêmeas que se doam, em essência. Caladas e repletas de artérias, pelas quais milhares circulam, incautos. Alícia, a auxiliar de escritório que morria todo dia no 9º andar de um edifício comercial, tinha a cidade como catedral particular. Nela, ouvia suas deusas, era sacerdotisa.
Na Consolação que dá nome à movimentada avenida, teve visões da luz: cachoeiras de cristais, compostas por gotas fixas, ditavam as auras dos ricos em suas ceias santas e living rooms. Vendidas por pequenas fortunas, essas esculturas suspensas, com capacidade para consumir algo como um milhão de watts, são verdadeiras armas de combate à escuridão, algo que, para certas pessoas, é tão inaceitável quanto morcegos ou pessoas atreladas à marginalidade. Com a visão dolorida, Alícia seguia relativamente apagada entre as cascatas fixas.
– No restaurante, haveria cadeiras e bandejas disponíveis? Jogos americanos nas mesas ou copos descartáveis? Fenilalanina ou stévia para adoçar o café póstumo?
Pensamentos aleatórios deglutidos 15 minutos antes das refeições ajudam na absorção de cálcio e ferro, asseguram os médicos.
Alícia caminhava inteira vestida de carnes. As peças moles, dependuradas, compunham sua roupa desigual. Assim, esparramada, esperava encontrar no menu um bom filé ou bombom de alcatra. O sistema por quilo ou à la carte faria a sua cabeça, forneceria a nutrição necessária para a tarde no leito-escritório assim que retornasse às conformidades do seu papel social?
Ela prosseguiu fazendo a linha açougue-mulher, dama em carne-viva: travestida como simbólico alimento da sociedade: assim como todas as mulheres devem ser.
Sentiu alguém tocar o seu ombro esquerdo, era Jordán, que, além de cozinheiro do restaurante de todos os dias, era seu melhor amigo. Após dar um pulo no banco, ele corria pra salvar os auxiliares e garçons, provavelmente desnorteados com a sua ausência. Jordán, em zigue zague, sumiu entre os passantes. Jordán, assassino, um dia confessou a Alicia: esmagava dentes de alho imaginando serem eles cérebros de aves. Ele via miolos brancos em um terreno de ardências e de aromas aquecidos. Matava, com a força das mãos, vários pássaros por dia. E fazia dezenas de pessoas comerem seus miolos imaginados. Jordán odiava seres alados, eles mostravam o quanto ele estava preso ao chão.
Finda a refeição, ingeridas as carnes e preenchidas as reentrâncias, Alícia se levantou, era hora de voltar. Ainda viu o chapéu de cozinheiro passar, de lá pra cá. Mas não restava tempo para despedidas, havia novas mortes à sua espera. Novos toc-tocs no caminho, eram muitos os ecos no templo-rua: orações não reconhecidas como tal; mas, não por isso, menos sacras.
Talvez por culpa de uma propaganda de sarjeta que, em meio a tudo isso, gritava, loura, para que Alícia comprasse um produto de enaltecer aparências, no caminho de volta ela bamboleou, sambou na vertigem, coisa de iaô prestes a receber o santo ainda não assentado.
– Os outdoors são os megafones da falácia, ensurdecem nossos olhos pra que sejamos brancos. Alícia concluiu, sem qualquer orientação de pessoa qualificada.
Caiu amolecida de braços e pernas, num sentir afundar-se em espuma – o mais próximo que poderia definir, em palavras, a sensação que teve, seguida de um sonho cintilante.
Lembrando que os sonhos, para Alícia, eram sua forma de interromper as mortes, assim como eles representam, para os cegos, a única forma de exercitar a visão, mesmo que de maneira invertida.
No ambiente enevoado, era fêmea-solar, de camisola solta. Aparentemente apressada, subia ao topo do mundo por escadarias de mármore. Os degraus judiavam de seus pulmões através das solas dos seus pés, roubadas de seu calor pela friagem da pedra branca. Alícia tinha três bebês agarrados a suas então três tetas, eles sugavam o leite de que são feitas as expectativas das moças de 27 anos. Alimentava três novas estradas, das quais não fazia ideia qual seria a melhor a seguir. Após subir entre o gelo e a alvura, bateu à única porta disponível. Jordán a abriu sem demonstrar carinho ou vínculo. Pombos escaparam de dentro do recinto e, voando em círculos, cobriram a cabeça do homem vestido unicamente com um terno cinza. Ele permaneceu ali, sem esboçar respiração, uma pintura surrealista.
***
A religiosa da calçada esticou gratuitamente para a Alícia-tombada uma revistinha manuseada, mas nunca lida, de 12 páginas, sem revisão gramatical e com fotos extraídas de um banco de imagens suíço. A publicação tinha sido criada para acabar com todos os males espirituais que hoje afetam o Brasil.
À espera do mundo real, com olhos impossíveis de serem abertos e mãos incapazes de segurar qualquer objeto, Alícia ainda sentiu um filete de sangue escorrer pelas têmporas. Era como se alguém esmagasse o seu cérebro com a força das mãos.
Cristina Judar (São Paulo, Brasil). É escritora e jornalista, autora das HQs Lina (Editora Estação Liberdade) Vermelho, Vivo (Devir), do livro de contos Roteiros para uma Vida Curta (Finalista e Menção Honrosa no Prêmio SESC de Literatura 2014) e do romance Oito do Sete (contemplado pelo ProAC de Prosa) – ambos publicados pela editora Reformatório. É coautora do livro-arte Luminescências e criadora do Questions For a Live Writing, projeto de prosa poética desenvolvido na Queen Mary University of London. É uma das editoras da revista de arte e cultura LGBT Reversa Magazine, além de integrante do conselho editorial da revista de literatura e artes visuais Theodora. Seu livro Oito do Sete é finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2018.