Sempre o perturbou a ocorrência de não ter nome próprio, nome de si mesmo e só. Era um Flores da Cunha entre tantos, assim designado em estima àquele que, tempos passados, fora general e líder benquisto nas terras do Rio Grande do Sul. Era um Flores da Cunha qualquer, na vã sina de assolar a esperança de boa vida que a mãe pressupunha lhe seria dada como herança do nome. Era mais para Zé-Ninguém que para Flores da Cunha, e sempre o desgostou o fato. Portava o nome de outro, não era ele mesmo, mas um mero defronte. Seu talhe não era jeitoso ou disciplinado como o do verdadeiro possuidor de seu nome, sua natureza não era harmoniosa, tampouco sua ocupação, deslocando sacas de grãos sobre o espinhaço na fazenda dos Seis Pinheiros, era meritório de um genuíno Flores da Cunha. Resignava-se com sua ordinária posição de homem comum na pequenez de sua existência, mas não sem se queixar o quanto pudesse.
Volta e meia trazia à tona o assunto durante a ceia. Quando os revezes cotidianos lhe despencavam sobre a cabeça, dizia que “isso nunca aconteceria com o verdadeiro Flores da Cunha”. Quando o futum de seus suores, após um dia todo de labuta, emanava por debaixo de seus braços, proclamava: “o verdadeiro Flores da Cunha cheirava como rosas”. Quando a canseira das pernas as fazia cambetear e tropicar no vento, protestava: “o verdadeiro Flores da Cunha tinha joelhos de ferro”. Sua esposa Rosa muito melindrava, contravinha que nunca quisera se casar com “o verdadeiro Flores da Cunha”, ao que o marido repetia retruques em pensamento, para não enervar ainda mais os ânimos dela. Apesar de muito pouco ser capaz, tentava refrear as torrentes reclamonas que golfava sobre a mesa para bom grado da mulher, cujo bem querer lhe destinado era o maior mistério.
Passava a semana toda nos Seis Pinheiros carregando as sacas das colheitas, assentado no indulto de que transportá-las tão pesadas no dorso lhe emperrava as pernas para o caminho de volta. Deveras, apesar da carnadura curta e inflada, na logística perfeita de robustez que o trabalho exigia, tinha as pernas já curvando mercês do tempo, a exemplo do cabelo ralo na tampa e do bigode branqueado. Rosa se valia dos dias para usufruir do silêncio da ausência do marido em cada cômodo da casa vazia. Flores da Cunha regressava apenas no fim de semana, para dar sinal de vida, dar aval ao ofício grosseiro nos vinténs atirados sobre a mesa, bebericar do trago forte da bodega próxima, ou apoiar os pés quebrantados no beiral da área de entrada da casa. Na delonga de Flores da Cunha em retornar naquela noite de sexta-feira, Rosa não viu estranheza. Decerto passaria a noite chupitando seus trocados na bodega da esquina, alastrando sua má sorte por ouvidos alheios, para dar a bonança de sua companhia à esposa no almejado almoço conjunto de sábado.
Mas a balbúrdia não tardou início, chegando adjacente à manhã mal nascida. Rosa se içou da cama batendo os pés no chão no remedar da barulheira à porta da casa. Imaginando que o marido se achegava da bodega na mínima capacidade de descerrar a porta, irrompia os cômodos já ensaiando seu resmungo de que “isto não são horas de chegar”, visto que o sol sequer acendera seu quentume. Não foi parca sua surpresa, portanto, quando deu com as fuças nas de Rolando, amigo querido de Flores da Cunha, tremendo como se confinado num inverno intrínseco e descomunal. As fácies pálidas de Rolando externavam, sem ser preciso voz, o findar brusco de amizade tão antiga. “Rosa, senta que a notícia não é boa”, disse já adentrando a sala, o que de supetão fadou Rosa ao penoso entendimento.
Encontraram-no, explicou, numa dessas estradas a caminho das fazendas, decerto em seu retorno ao lar a partir dos Seis Pinheiros. Estendia-se teso e gelado, com o umbigo saltado a apontar a lua minguante, oferecido ao sereno pela camisa de botões aberta. Nem sequer se achegava a alvorada quando a notícia zuniu em seus ouvidos, noutra baiuca mais distante que agora frequentava pela fresca confiança do bodegueiro em lhe servir fiado. Uns sujeitos argumentavam entre um sorvo e outro de aguardente sobre o cadáver achado não muito semoto. Logo a alameda cumulou o berreiro dos vizinhos, enunciando a quem tivesse ouvidos a designação do miserável: o corpo na estrada era Flores da Cunha. Ela que não se afligisse, dizia ao acarinhar desjeitoso o braço de Rosa, não vira o defunto, mas despachara o filho Caio junto da funerária para buscá-lo, recolhê-lo enfim do barral da estrada. Viera logo ter com ela, pois desejava que ouvisse de boca amiga o relatar de tão cruel evento, além de oferecer zelo pela má hora. Ela que tomasse seu tempo de amargura, sofresse o quanto lhe fosse necessário sem se esmerar com pormenores: ele deixaria tudo pronto, encomendaria as flores e o caixão. E não muito mais tarde marchariam de encontro ao finado esperando na igreja por sua mortalha e o adeus de seus entes em seu último dia acima da terra.
O revés de não tê-lo mais seu despencou sobre Rosa como um machado a lhe destrinchar as entranhas. Passara uma vida, pranteava, à custa de fazê-lo feliz e ser feliz com ele. Avisou a família que viesse: a irmã Agenora, que muito pouco afeiçoava com o cunhado, e os filhos Miriam e Manuel, na veemência da mocidade construindo suas vidas apartes da guarida dos pais. Recebeu flores e regou cada uma com suas lágrimas, mandou para a funerária as rendas do enxoval do casamento, resistido até as bodas de prata, para que forrassem o caixão de cedro. E se amontoando aos seus para lastimar sua desventura, tomaram nos braços as flores e fizeram sua andança ao encontro de Flores da Cunha.
Não tarde, a família de Flores da Cunha, em cortejo, esbarrou noutro cortejo por Flores da Cunha. Levavam tantas flores quanto, ensaiavam cânticos enquanto exibiam seus sofreres na rua da igreja, choravam o desalento de presenciar a partida de sujeito tão estimado. Rosa sustou sua consternação para reparar em cada um daqueles rostos incógnitos, ladroando os lamentos pela morte de seu marido, seu homem, seu companheiro. Mas nenhuma angústia alheia lhe era mais atroz que a daquela jovem trajada de crepe lutuoso, cercada e amparada por tantos, enquanto transbordava lágrimas e ulos de desalento. Chorava o finamento do marido como se fosse ela a esposa. Num elã irado de presenciar luto tão simulado, arriou as flores de seu colo e foi de encontro ao povaréu em séquito, bradando mil e um impropérios aos que cessavam suas odes no assombro do palavreado de Rosa.
Em meio aos reclames de Rosa de “o marido é meu, o cortejo é meu!”, Agenora deliberava a pouca voz aquele que se tornou o salmo mais cantado entre as duas procissões: “Flores da Cunha tinha duas famílias”. Enquanto Rosa, sustentada pelas amigas penosas de sua situação, tentava injuriar a outra viúva e aqueles que a escoltavam, Agenora agora esgoelava aos quatro cantos que sempre estivera certa, e não era por casualidade que tanto desgostava Flores da Cunha. “Cafajeste! Agora vocês me escutam, agora vocês enxergam! Esse era o maior cafajeste já visto!”. E ia entre um cortejo e outro, esbravejava nas fuças dos seus e dos desconhecidos, sem se preocupar com Miriam e Manuel no esforço para suster a dor de perder o pai, não só em corpo, mas também o sujeito que pensavam conhecer.
Tentando paziguar os descontroles de Rosa, Rolando a continha pelos braços, sendo também vítima das suas unhadas raivosas remetidas à viúva. Em meio ao aglomerado, pelejando há poucos metros da igreja, viu o filho Caio que vinha disparado em sua direção, com a fronte tomada de assombro. Pelo seu aspecto angustiado, apenas, já conseguia desvendar o grande engano criado pela sua alma leviana.
Em meio aos murros de Rosa que erravam a mira e estouravam nos seus braços, convocou aos brados outros homens para que o ajudassem a contê-la e levá-la para casa. Por essa hora, toda a cidade já era sabedora do alarido provocado por Rosa, dos boatos de que o homem morto sustentava duas famílias, e já não havia mais formalidade para que qualquer dos cortejos continuasse. Desataram Rosa dos cabelos da outra viúva e a arrastaram pelo caminho de volta, enquanto se deplorava com os filhos, ora caindo de joelhos em seus pesares, ora culpando os céus por permitirem tamanha dor a uma mulher. Rolando não piava um gemido, mas amparava Rosa pelos ombros como se recitando uma desculpa que não pode ser expressa. Mas já esboçava seu escape de tamanha ocorrência: chegados à casa de Rosa, bem sabia, só seria capaz de dar meia-volta e correr como nunca antes havia corrido.
O que o arregalo dos olhos de Caio lhe disse de longe sem que fosse preciso palavras, é que aquele funeral desairoso e prematuro era, senão, façanha de um grande descuido seu. Não se aplicava a Flores da Cunha marido de Rosa, cunhado de Agenora e pai de Miriam e Manuel. Tampouco para o general Flores da Cunha, aquele que em outrora fora líder benquisto nas terras do Rio Grande do Sul, e que já abandonara suas carnes neste mundo há muito tempo. Era um Flores da Cunha entre tantos, um Flores da Cunha qualquer, mais um entre os incontáveis Flores da Cunha viventes no Sul da América em honra ao primevo daquele batismo. Na agonia de escutar o nome do amigo proferido por bocas decadentes à custa da morte, não perdeu um momento pensando que era factível outro Flores da Cunha ser o mais azarado naquele dia.
Na comitiva em retorno, vinham cabisbaixos, pela rua de Rosa, alguns ainda com os braços florescendo coloridos. Já não se amuavam tanto pelo finado Flores da Cunha, mas pelo tormento demasiado e irregular que lhes causara deixando essa vida. Aos portões de casa, Rosa imitou o sobressalto daquela manhã, quando deu de fronte nos tremelicos de Rolando, ao vislumbrar aquele que apoiava sereno os pés quebrantados no beiral da entrada. Na mescla de sentimentos que se revelavam, não sabia se ria ou ainda mais chorava. Era outro Flores da Cunha, não o seu. Outra viúva, não ela mesma. Foi de encontro ao marido, dando os cumprimentos num “isso não são horas de chegar”, como ela o teria feito mais cedo. Rolando, cônscio da baderna vexaminosa de seu engano, já ia longe, corria como nunca antes. Pela primeira vez Flores da Cunha se alegrava de não ser outro Flores da Cunha.


Letícia Copatti Dogenski (Passo Fundo, Rio Grande do Sul, 1994). Sou gaúcha e tenho 23 anos. Autora das novelas “Onde as Nuvens Fazem Sombra” (2015), “A Última Rosa do Verão” (2017) e do livro de contos “Previsões de Mau Signo” (2017). Estudante de Odontologia.


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