A palavra Cultura, no Brasil, termo amplo e de variada significação, é empregada em muitas disciplinas escolares e científicas. Existem referências ao seu conceito que vêm servindo para exatificar os mais diversos caminhos do entendimento das coisas humanas. Claro que a sua abrangência não se afasta dos parâmetros naturais, biológicos e mecanicistas do mundo físico. Contudo, precisa estar epistemologicamente distante da Natureza quando se tratar de dar ênfase aos propósitos criadores da Pessoa, no seio dos interesses da sua coletividade. Com cada vez maior facilidade, estamos assistindo o ressurgir da importância da Cultura como paradigma central dos estudos disciplinares.
Tanto a Cultura (como um todo), como a Filologia (o seu estudo), banidas dos estudos escolares no nosso País desde o século XIX, puderam voltar a ser desenvolvidos ao final do século XX, com a queda dos paradigmas centrais dos estudos humanísticos, que antes privilegiavam a circunscrição estatal. Dados da Cultura brotavam nos estudos de literatura, porque esta possuía justificativa maior: a necessidade de efetivar aproximação aos estudos de linguagem. Neste início de século XXI, em que pese estarmos pendentes de conteúdos programáticos herdados do último quartel do século XX, já se tornou mais ou menos comum aceitar as particularidades subestatais nos programas de estudo das principais disciplinas do ensino fundamental e do ensino médio no Brasil.
Não estando os estados nacionais, da mesma forma que antes, obrigados à defesa da sua jurisdição intocável, dado que o mercado pede maior porosidade das fronteiras, dados os processos de internacionalização de empresas, dados os imperativos da Globalização, a configuração disciplinar (escolar ou científica), no seio do Estado-nação moderno, passou a considerar, com abertura mais significativa, os aspectos culturais. Nesse sentido, hoje, isso significa privilegiar todos aqueles itens singulares de comunidades infra-estatais que tornam um agrupamento humano diferenciado diante de outra sociedade maior, antes ressaltado o valor da igualdade com maior empenho, e não a particularidade.
Se antes os elementos diferenciadores das comunidades eram perigoso artefato passível de ser empunhado como arma potencialmente pronta a arrojar contra um centralismo exacerbado, somente havia espaço folclórico e descafeinado para destacar positivamente o desarmado lugar da cultura, da narrativa localista, do idioma doméstico, da gastronomia a turistas. Com dificuldade, passava-se aos aspectos jurídicos da coletividade, ainda que fosse (ou que não fosse) apenas como exemplo de típico diferencialismo a comprovar a representação do Estado como símbolo e força da reunião das particularidades em um todo protetivo.
Vivemos, portanto, em séculos, o XX e este comecinho do XXI, nos quais os escritos, as escolas, as ciências humanas e sociais, a literatura, as línguas, a diplomacia, as moedas e os passaportes, os mapas e a geografia, a História e as épocas literárias, caracterizavam-se todos pelo matiz estatalista. Nessa transição de paradigmas seculares, investem os grandes autores na rearticulação de saberes, buscando nos inícios, nas fontes, na História e nas perspectivas de antanho, não as explicações das totalidades estatalizantes (que eram necessárias aos mercados e à burguesia dominante), mas sim uma perspectiva inovadora (contudo antiga, dada a sua perda frente ao emergir vigoroso do paradigma estatalista) que recupera as famílias, as comunidades de relações privadas, os seus interesses acompanhando os deslocamentos humanos a propiciar transterritorialização cultural, mestiçagem cultural, contribuições culturalistas, enxertos linguísticos, cruzamento de ethos e de etno; logos redefinido pela gene expulsa de um lugar para o outro, redefinindo um Novo Mundo, enxotando os autóctones e tornando o alóctone um novo centro de uma Cultura como um Todo redefinida pelas cores locais geminadas.
Neste contexto de virada de século, situa-se a obra de Milton Hatoum, ele mesmo pessoa revestida de transitoriedade: amazônica de nascimento (Manaus, 1952) e vivência, libanês de origem familiar, parisiense de preferência estudantil, de leitura predileta estadunidense, mas cosmopolita pelas escolhas visionárias da História (real e ficcional) que desloca família das Arábias às Amazônias, com um mapa-mundi sem cores chapadas, cujas cidades são as principais portas de acesso das pessoas nas estradas de terras e mares que se interconectam sem pejo, mas sem desprezo às raízes.
O conjunto da obra de Milton Hatoum possui uma clara percepção dos aspectos culturais que moldaram a Amazônia. Não perdemos de vista a construção do todo, mas tomamos aqui apenas o seu texto Dois Irmãos. Nele podemos destacar os fatores por ele preferidos, por um lado típicos representantes da existência de normas coletivas, por outro lado, historicamente edificadores de uma Cultura nova na Amazônia caudatária de valores trazidos pelos migrantes (conjuminados com os habitantes autóctones), segundo uma narrativa absolutamente vinculada a uma realidade fáctica. Uma vez que utilizamos uma crítica histórico-cultural (Filologia Política à frente), estamos diante da possibilidade de elucidar elementos reconfiguradores de cada espaço do Novo Mundo como centrado em um par de componentes originários e originadores de uma resultante que será sempre outra e a mesma em algum sentido.
Claro que dependemos, nesta crítica histórico-cultural, de uma perspectivação intercultural, na qual não é o múltiplo nem o cadinho aquilo que importa (o ideal multicultural é de índole estatal), mas sim se destaca a base inicial culturalista (ainda que já em si, fruto de miscigenação). Na origem prévia à Amazônia moderna, torna-se a pessoa originária de uma célula-mater da composição futura, que já será mescla e já será futuro e já será de novo incerteza.
As abordagens interculturais possuem vantagens, na análise de cunho culturalista ou jurídico, perante o que era a vertente multicultural, porque torna mais nítido um núcleo cultural sem a admissão imprescindível da “mistura” recente de diversos aspectos que determinam dualidades, de resto presentes em todas as culturas. E aqui não estamos falando de sangue nem de fenótipos, mas de fatos sociais escancarados pelas páginas de Hatoum.
Com o objetivo de examinar um aspecto (cultura & direito) havido em um livro (Dois Irmãos), de um conjunto enfeixando uma leitura hodierna hipermodernista como é a obra literária de Milton Hatoum, plena de elementos culturais, consideramos técnicas hauridas da metodologia político-cultural, ou seja, a Filologia Política, e destacamos algumas das suas categorias teóricas (presentes em ROCHA) e mais os parâmetros de interpretação trazidos de diversos livros de Terry Eagleton (especialmente o de 2012).
Dois Irmãos é obra que possui realidades de várias origens, seja amazônica (indígena, manauara, etc.) ou libanesa, por exemplo, com questões de gênero pelo meio, e se presta como poucas a repensar o processo de ocupação e “colonização” desta parcela do Brasil. Tratar-se-ia, mais propriamente, de autocolonização, se admitimos que o imigrado, muitos originários do próprio País, nem sempre tenciona impor os seus parâmetros culturais, mas simplesmente não pretende perdê-los porque não possui outros referenciais suscitados no relacionamento com “o outro”. E, pelo lado autóctone, as referências culturais alheias passam a permear o conteúdo local, conforme servem para melhor deglutir as vantagens aportadas pelas comunidades forâneas.
Por isso, e isso se dá melhor de modo interdisciplinar, passa-se a compreender na obra a presença de itens diversos, suficientes, capazes de revelar todo um complexo cultural e normativo-cultural, raramente encontrado com tanta clareza em autores que retratam a região, pois ninguém se desdobrou antes com tanta seriedade em deixar de lado o romantismo do local ou a crítica do colonial. Por isso, Milton Hatoum não é “regional”. Por isso, as normas culturais ou jurídico-culturais tornam-se centrais na explicação desta Amazônia mestiça. Por isso, Dois Irmãos é livro que traz representamen de uma explicação de mundo efetuada por uma Literatura que se torna capacitada a explicar a nossa contemporaneidade sob um ponto de vista não propriamente estatalizado e sem dinamismo, mas de um ponto de vista que tem nos locais das culturas a idiossincrasia mais aguda no reconhecimento da circulação de pessoas com a sua bagagem cultural, ressignificando o todo onde toca, constrói e se estabelece.
Não se dá esta resultante na Amazônia como Novo Mundo de forma exemplar ou única. É claro que todas as sociedades são, em determinado momento histórico, classificadas como invenção de mais de uma comunidade diferenciada. Assim, sabe-se que Portugal teve elementos moçárabes (ao Sul) e godos (ao Norte), sendo o substrato lusitano (central) um dos principais componentes étnicos que lhe deram a coloração cultural atual. Do mesmo modo, fala-se dos “elementos” indígena, branco e negro, como formadores do Brasil (RIBEIRO, 1995). No entanto, sempre decaímos, nas várias explicações do País, numa proposta calcinadora das partes componentes que se resolve no Estado-nação moderno. Milton Hatoum não se deixa enlevar por esta falácia.
Com Dois Irmãos, ele trata de trazer à tona alguns dos elementos normativos configuradores que saltam à vista, a revelar as bases jurídico-culturais dos transterritorializados, normas que permanecem vigendo, ainda que sabedores todos de que sairá vencedora um dia a resultante mais valorizada na Casa Grande brasílica.
A perspectiva, jurídica ou cultural, que sobe destacada pelos exempla elencados conformam, pelo projeto literário de Hatoum, um espaço novo que nada fica “devendo” para os seus “fornecedores” de itens civilistas, uma vez que o sincretismo final possui uma idiossincrasia capaz de revelar o que Darcy Ribeiro chamou de “uma nova Roma”, isto é, uma civilização que se constrói com resistência indígena, num espaço com participação plural, que se vai transformando, pouco a pouco, mas com o ideal consolidado dia a dia de haver uma identidade própria.
As realidades socioeconômicas aportadas à floresta, desde o final do Império, o surgimento da Zona Franca de Manaus, em 1967, o Polo Industrial de Manaus, renovado por mais vinte e cinco anos, uma e outra vez, o reconhecimento dos novos sujeitos de direito trazidos pela Constituição Federal de 1988, o regime das águas, que “comandam a vida” (TOCANTINS) e o sistema capitalista moderno, tudo conflui na direção de evidenciar uma Modernidade sempre renovada. Pela verificação de elementos de cultura e de direito na obra Dois Irmãos, de Milton Hatoum, podemos perceber como a Literatura pode, ainda nos nossos dias, explicar à sociedade, como num processo especular, a sua formação, a sua continuidade, a simples (ou complexa) participação complementar no caráter internacionalista da colonização, no caso, da nossa Amazônia. As conclusões a que chegamos nos fazem crer que o emprego de uma análise de obras recentes, cuja qualidade seja requisito elementar (sem relação direta com resultados de vendas) permitem explicar a obra hatoumiana como exemplar no (re)conhecimento do processo histórico e fixação da unidade dessa faceta da sociedade brasileira, individualizada pelos séculos como processo civilizacional diferenciado, tanto em termos culturais como normativos, dado o seu processo de construção político-cultural.
A obra Dois Irmãos é o retrato de realidades sociais de uma Manaus em transição entre o sonho da época da borracha, os dias difíceis da Segunda Guerra e a Manaus em decadência que, incluída, como mais uma engrenagem na dinâmica histórico-econômica, no projeto de penetração do capitalismo internacional na Amazônia, tornou-se parte de um programa oficial de Estado, e despontaria com o projeto de desenvolvimento levado a cabo pela Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA) e, na atualidade, se constituiu como avançado Pólo Industrial de Manaus. No contexto dessa Manaus em transição, descrita por Hatoum, convivem brasileiros, estrangeiros, indígenas, cada qual compondo o quadro de relações sociais no qual o elemento jurídico ou o Direito se manifestaria conforme a origem de cada comunidade, seja na particularidade das dinâmicas econômicas, seja nas relações familiares, religiosas e culturais, seja porque o ambiente de etnicidades em contato assim impunha.
Em um primeiro momento, a obra Dois irmãos parece relatar apenas a relação entre Omar e Yaqub, com a mãe como elemento (des)estabilizador. No entanto, a obra revela-nos normas próprias do mundo das relações privadas de origem dos pais, Halim e Zana, e das demais famílias que convivem naquele entorno social. Daí que, dos tantos recortes que poderíamos realizar, preferimos explorar o lado do Direito da citada obra: Ele referencia o núcleo diferencial de Milton Hatoum. São muitas, são dezenas as passagens do livro nas quais vemos a presença de vários âmbitos do Direito ou de um rol de Direitos: Direito de Família, Direitos Linguísticos, Direito do Estrangeiro e Direito Penal. Assim é possível falarmos, de modo genérico, do Direito das relações privadas, que envolveria o direito das famílias em contato, percebendo-se um entramado de relações entre amigos, vizinhos, comerciantes, que têm em comum a origem estrangeira, ou seja, são libaneses deslocados.
Destacar as várias parcelas textuais de Hatoum, as passagens descritivas do funcionamento das pessoas no Novo Mundo, faz transparecer de modo nítido como fomos engrupidos até o presente, confiantes na estrutura de um Estado-nação que nada mais era do que paradigma indiciário de uma situação de necessidade de encobertamento da Cultura como predominante. Com obras como as de Milton Hatoum, cada vez com maior facilidade, assistiremos o ressurgir da importância da Cultura como paradigma central dos estudos disciplinares. Estejamos atentos.
Patrícia Helena dos Santos Carneiro (Rondônia, Brasil) É professora Adjunto A da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Advogada e Doutora em Direito pela Universidade de Santiago de Compostela. Atuou como Consultora Jurídica no Projeto Piloto Registro Civil de Nascimento dos Povos Indígenas no Estado do Amazonas (2007-2008), levado a cabo pela parceria entre a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e o Projeto Rondon Nacional, tendo realizado estudo técnico-acadêmico sobre o Registro Civil de Nascimento e Direitos Indígenas. O referido Projeto foi agraciado com o Prêmio Direitos Humanos, em 2008, da Secretaria Especial de Direitos Humanos.
Júlio César Barreto Rocha (Rondônia, Brasil) Graduado em Letras (UFAM, 1987) e em Direito (UNIR, 1995), é doutor em Línguas Neolatinas pela UFRJ (fevereiro de 2005). Obteve o doutoramento europeu em Filologia pela Universidade de Santiago de Compostela (outubro de 2003), onde lecionou. É professor da Universidade Federal de Rondônia desde 1990, vinculado hoje ao Departamento de Línguas Vernáculas, e conclui tese doutoral em Direito Civil junto ao Departamento de Direito Privado da Universidade da Coruña, orientado pelo Professor Doutor José Manuel Busto Lago.
Bibliografia