Este texto é uma síntese da dissertação “Manual de estilo e criação literária com a artesã Lygia Bojunga”. Iniciamos com uma pequena biografia sobre a autora. Lygia Bojunga é uma escritora brasileira nascida em Pelotas, no Rio Grande do Sul. No entanto, veio para o Rio de Janeiro ainda criança, aos oito anos. Na juventude, após abandonar os estudos de medicina, dedicou-se ao teatro, paixão que perdurou por toda a vida, e que exerceu uma forte influência nos seus textos ficcionais. Além disso, trabalhou escrevendo para a rádio e para a televisão durante algum tempo. Não obstante, Lygia Bojunga identificou-se efetivamente com a literatura devido à liberdade de escrita que esta possibilita. Sua trajetória literária está marcada pelos vinte e três livros publicados. Uma das marcas de sua obra é o “Pra você que me lê”, um espaço informal, que a escritora criou para estender a conversa com os leitores além-livro, isto é, além da narrativa ficcional.
No primeiro capítulo desta Dissertação, intitulado “Lygia Bojunga: uma escritora-leitora”, tendo em vista que a escritora não possui ainda uma biografia oficial, pretendemos fazer uma retomada de sua trajetória literária, a partir de fatos vivenciados pela autora ao longo da vida. O grande destaque para esta parte da dissertação foi a composição de sua biblioteca pessoal, ou seja, o conhecimento acerca da formação literária da escritora. No seu último livro, Intramuros (2016), Lygia Bojunga comenta sobre a importância que dá à leitura e ao livro:
Tem outra coisa que eu ainda queria te dizer: já faz algum tempo que eu venho sentindo o desejo/necessidade de alargar as minhas horas disponíveis a fim de ficar relendo os autores queridos e lendo os que ainda não tive tempo de ler. É isto que ando fazendo. E, neste fazer, estou me reencontrando com o eu do tempo em que eu era “só” leitora. Quem sabe, então, estou voltando ao ponto de partida da minha relação com o Livro e da intenção que tive mais tarde de fazer um “redondo” com ele? (BOJUNGA, 2016, p. 181-182).
De acordo com a escritora, é necessário estar sempre nessa condição de leitora, pois todo escritor deve ser, antes de tudo, um leitor. Diante desse contexto, Lygia Bojunga, na obra Livro – um encontro (1988), comenta sobre os seis “casos de amor” que teve com os livros e com os respectivos autores – Monteiro Lobato, Dostoiésvski, Edgar Allan Poe, “Santo sem nome”, Rainer Maria Rilke e Fernando Pessoa. Além desses, ela ainda aponta para a relevância de escritoras, como: Clarice Lispector, Cecília Meireles, Jane Austen e Katherine Mansfield. Cada escritor citado teve sua relevância para o processo de formação de Lygia Bojunga como leitora e como escritora.
A respeito do processo de escrita bojunguiana, a autora comenta que resolveu se dedicar à literatura pela liberdade criativa que esta oferecia. Para o teatro, ela tinha que se preocupar em criar algo que fosse possível de se encenar, de montar um cenário. Para o rádio e para a televisão, o texto precisava ter um limite de palavras, um modelo mais ou menos rígido a ser seguido. Desse modo, Lygia Bojunga almejava a liberdade de criação, e foi isso que encontrou na literatura.
Os prêmios literários vieram cedo, já com a publicação da primeira obra, Os colegas (1972), que ganhou o prêmio Instituto Nacional do Livro (INL), em 1971, e o prêmio Jabuti, em 1973. Dentre todos os prêmios, os de maior destaque foram: o prêmio Hans Christian Andersen, o International Board on Books for Young People (IBBY), pelo conjunto de sua obra, a qual, na época da premiação, contava com apenas os seus seis primeiros livros – o prêmio internacional mais tradicional de literatura para crianças e jovens, e o prêmio Astrid Lindgren Memorial Award (ALMA) – o maior prêmio internacional jamais instituído em prol da literatura para crianças e jovens, criado pelo governo da Suécia.
Após a conquista deste último prêmio, Lygia Bojunga obteve os recursos necessários para realizar seu sonho de ter uma editora e uma fundação cultural. Por sua vez, a autora não obteve o apoio de muitos amigos, que julgavam que seria maléfico para sua produção literária. Mesmo assim, sem dar ouvidos às críticas, a editora e a fundação Casa Lygia Bojunga foram inauguradas em 2002, com a publicação do livro Retratos de Carolina (2002).
É importante ressaltar o contexto literário em que a escritora emergiu. O início de sua produção literária culminou com os “anos de chumbo”. No período da Ditadura Militar (1964-1985), muitos artistas, poetas e músicos foram perseguidos e exilados do país. Segundo a autora, os militares não davam muita atenção para os livros infantis, sendo assim, a partir de metáforas, a escritora construiu muitas de suas obras que criticavam o regime militar, o alheamento e a repressão de qualquer natureza, como por exemplo, A casa da madrinha (1978), O sofá estampado (1980) e O meu amigo pintor (1987). Neste último livro, o pintor, um dos personagens principais, era perseguido pelo regime militar e já até havia sido um preso político.
Por fim, para compor este primeiro capítulo, baseamo-nos no conceito de espaço autobiográfico, com foco nas contribuições de Philippe Lejeune, mas com um olhar para o contexto histórico, político e cultural da obra literária, estudado por Dominique Maingueneau, trabalhado anteriormente por Pierre Bourdie com o conceito de campo literário. Consoante o ensaísta, é possível encontrar elementos autobiográficos no conjunto da obra de um escritor, mesmo nos livros ficcionais. Portanto, a partir da análise acurada, tanto das obras ficcionais da escritora, como das obras de cunho memorialístico, chegamos também a elementos autobiográficos.
O segundo capítulo teve como título “Lygia Bojunga e o processo de criação literária”. Nele apresentamos a compreensão de estilo segundo Arthur Schopenhauer, o qual enaltece as idiossincrasias de cada escritor, advertindo que qualquer possibilidade de cópia funciona como uma máscara, visto que, por mais que seja belo o estilo de outrem, a cópia deste “[…] torna-se pouco depois insípida e insuportável porque não tem vida, de modo que mesmo o rosto vivo mais feio é melhor do que ela” (SCHOPENHAEUR, 2010, p. 79). A partir dessas questões, Lygia Bojunga comenta acerca da dificuldade de um escritor desenvolver um estilo próprio, sem desconsiderar que esta maneira de escrever recebe influências de outros escritores.
Neste capítulo, concentramo-nos também na análise de campo literário, segundo Pierre Boudier, ou contexto, consoante Dominique Maingueneau, no qual Lygia Bojunga estava inserida, para verificarmos de que maneira a escritora interveio nas produções já existentes, ou se aproximou delas. Sobre campo literário, Dominique Maingueneau afirma:
Ao relacionarmos o escritor a seu espaço institucional, esforçamo-nos por mostrar o caráter ilusório de uma oposição entre uma individualidade criadora e uma sociedade concebida como um bloco. Nem por isso invalidaremos a existência dos criadores no funcionamento de um campo literário. (MAINGUENEAU, 2001, p. 46).
A produção literária de Lygia Bojunga iniciou na década de 1970. Edmir Perrotti, em sua obra intitulada O texto sedutor na literatura infantil (1986), ressaltou a relevância que a escritora brasileira teve para a produção literária infantil e juvenil da época. Naquele período, as obras literárias eram grandemente influenciadas pelo discurso utilitário, tendo a referência burguesa como modelo. O foco dos textos estava no teor instrucional e didático, e na relação com a realidade, ou seja, o discurso estético ficava em segundo plano. Edmir Perroti comenta acerca da intervenção das obras de Lygia Bojunga no campo literário:
O impacto causado à literatura brasileira para crianças pela obra de Lygia Bojunga Nunes, por exemplo, dificilmente poderá tornar sustentável a defesa do utilitarismo como forma ideal e/ou única de discurso literário dirigido à criança ou ao jovem. Rompendo definitivamente, como João Carlos Marinho, com a tradição utilitária, a excepcional autora gaúcha acenou sempre, desde Os colegas, publicado em 1972, com o discurso da possibilidade, que sempre deixou claro para o leitor estar ele diante de um universo “criado”, de um “artifício” que não se quer “verdade”, que não sequer dogma a ser seguido, ainda que seu universo aponte para direções bem definidas. (PERROTTI, 1986, p. 133).
Lygia posicionou-se num lugar inovador em relação aos demais escritores que produziram literatura, na década de 1970. O foco de suas produções estava no discurso estético. Sabemos que o que incentivou o início da produção literária de Lygia Bojunga foi a liberdade de expressão que a literatura propiciava, e, quanto a isso, a autora desfrutou amplamente dessas possibilidades.
Outro aspecto discutido sobre estilo foi a diferença entre os conceitos de influência e de imitação. Esses conceitos foram debatidos a partir das reflexões de Sandra Nitrini na obra Literatura Comparada: História, Teoria e Crítica (2015). O primeiro ponto a ser discutido é que o termo imitação aqui se refere à cópia, repetição. Diante desse contexto, consoante a pesquisadora, “a influência denuncia a presença de uma transmissão menos material, mais difícil de se apontar […]” (NITRINI, 2015, p. 127) Nesse caso, após o contato com outras obras e leituras, o escritor pode assimilar as influências de forma peculiar de modo que seja possível encontrar um caminho próprio, seu próprio estilo. Em consonância com tais ideias, Lygia Bojunga afirma no livro Tchau (2015):
Cada um cria de um jeito, já que “cada um é outro”, como se diz lá em Minas. O problema é que, às vezes, a gente custa à beça pra encontrar o nosso jeito. Acho que é ouvindo contar do jeito que cada um cria, prestando atenção no jeito que o outro criou, que – um dia – a gente acaba encontrando o jeito que a gente tem pra criar. (BOJUNGA, 2015, p. 16-17)
No desenvolvimento de seu estilo, além da coloquialidade de sua linguagem, Lygia Bojunga evidencia sua predileção pela metalinguagem. Muitas de suas obras têm textos (bilhetes, cartas, peças, etc.) dentro de textos (romances), como as bonecas russas.
A noção de metalinguagem aqui utilizada refere-se ao conceito de “sobrescrever”, que consiste, de acordo com Samira Chalhub, na obra Metalinguagem (1997), com “Um ‘diz-fazimento’, um dizer que faz o dito e defaz o repetido” (CHALHUB, 1997, p. 61). Dessa forma, a própria autora faz uso de um neologismo na tentativa de explicar essa nova hipótese acerca da escritura. Temos um “diz-fazimento” no lugar de um “des-fazimento”, assim, Chalhub realiza um trocadilho com os prefixos a fim de propor um novo conceito que possibilita a distinção de significados. Enquanto este se refere ao ato de desfazer algo, anular a produção realizada, aquele diz respeito ao falar sobre o fazer literário, neste caso. Tal proposta tem o intuito de criar um espaço inusitado que se utiliza da linguagem para isso.
Por fim, encerramos o segundo capítulo com um tema que será desenvolvido minuciosamente no terceiro, que é a ligação entre literatura e pintura no processo de criação literária da escritora. Apontamos de início essa aproximação no “Pra você que me lê” da obra Tchau (2015). Em 2012, Lygia Bojunga fez uma reedição do livro Tchau por sua editora, Casa Lygia Bojunga. Na produção da nova capa do livro, foi colocada a pintura A solitária (1896), de Edvard Munch, pintor norueguês. A respeito das reflexões da escritora sobre a proximidade que as artes plásticas têm de seu processo de criação literária, Lygia Bojunga afirma: “Ali estava a imagem criada pela mão de um pintor me relevando, em outra linguagem, o mesmo que a minha mão de escritora tinha procurado pintar nos meus contos.” (BOJUNGA, 2015, p. 14)
Nessa passagem, a autora não só revela essa proximidade, mas também o entrecruzamento das linguagens (literatura e pintura). Para isso, a escritora inverte os verbos, ao invés de dizer que tinha procurado escrever nos seus contos, é importante repetir, ela diz: “(…) tinha procurado pintar nos meus contos.” (BOJUNGA, 2015, p. 14 – negrito nosso). Nessa citação, a relação entre literatura e pintura é clara. Sem dúvida, em sua opinião, a escritora aproxima as duas atividades artísticas de modo que, para ela, tanto a literatura se mostra capaz de formar imagens quanto a pintura se revela capaz de contar histórias. Segundo a autora, linguagens distintas podem falar sobre a mesma temática: “Por que então não me sentir tomada pela sensação de familiaridade se o pintor e eu falávamos de uma mesma sentença a ser cumprida: a solidão.” (Idem, p. 15)
Tal proximidade é retomada em outras passagens de outros livros. Destacamos a obra Intramuros (2016), em que há uma relação do processo de criação literária da escritora com o método artístico do pintor russo Marc Chagall.
“Intramuros: romance e depoimento literário, ficção e autobiografia” é o título do terceiro capítulo. Nesta parte da pesquisa, destacamos a análise do aspecto híbrido da obra, que consideramos um romance autobiográfico pelo uso de outros gêneros em sua composição, o que já foi apontado pela autora na quarta capa do livro:
Creio que o Intramuros pode ser catalogado como romance, mas, pra mim, tem mais a ver com um depoimento literário, digamos assim – um despretensioso relato de como a gente, se perdendo, vai se descobrindo no esforço de escrever um livro. Não é uma obra voltada para leitores mirins, e sim para quem se interessa pelo fazer literário e pelo cumprimento de um projeto de vida. (BOJUNGA, 2016)
Na citação acima, é possível perceber que a escritora enaltece o elemento autobiográfico, o depoimento, a escrita confessional, mas, na análise do livro, podemos perceber que há um entrecruzamento de ficção e autobiografia, de modo que não é possível desvencilhar um do outro. A fim de embasar tais conceitos, fundamentamos essa pesquisa com as obras de Maria Luiza Remédios, Phillipe Lejeune e Luis Costa Lima.
Com Maria Luiza Remédios, na obra Literatura Confessional: autobiografia e ficcionalidade (1997), vimos a multiplicidade e a fragmentação do eu, o que significa que a Lygia Bojunga escritora já não é a mesma que relê a própria obra, analisa e comenta, que também já não é a mesma da infância rememorada no livro. Logo, estamos diante de vários eus, que se fundem em um processo de “ilusão autobiográfica”, de acordo com Wander Melo Miranda.
Com Philippe Lejeune, discutimos os conceitos de pacto autobiográfico e de pacto fantasmagórico, espaço autobiográfico e contrato de leitura a partir das discussões apresentadas no livro O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet (2014). Muitas questões surgem, como por exemplo: Qual o limite entre o aspecto autobiográfico e o ficcional na narrativa? De que maneira esses aspectos se relacionam ou não no livro? Como ocorre o imbricamento dos discursos autobiográfico e ficcional na estruturação da obra, uma vez que há uma intersecção entre eles?
Para Lejeune, a ficção (o romance) pode ser mais fiel que a própria realidade, a autobiografia. Com o intuito de aprofundar sua reflexão, o pesquisador cita André Gide (1869-1951): “As memórias só são sinceras pela metade, por maior que seja a preocupação com a verdade: tudo é sempre mais complicado do que dizemos. Talvez se chegue mesmo mais perto da verdade no romance.” (GIDE apud LEJEUNE, 2014, p. 49)
Talvez esse seja o motivo pelo qual a escritora tenha optado em unir ficção e autobiografia no mesmo livro. Para poder revelar o que há de mais profundo na sua trajetória, seu projeto de vida.
Para Luis Costa Lima, no livro Pensando nos trópicos: dispersa demanda II (1991), mais especificamente no ensaio “Persona e sujeito ficcional”, é trabalhado o conceito de persona, o qual não se confunde com o sujeito, pois funciona como uma máscara que se estabelece através das relações sociais, e só vê a si mesma e aos outros por meio dos papéis que exerce.
Para finalizar a dissertação, a partir da análise de Intramuros (2016), retomamos a comparação entre literatura e pintura discutida no final do segundo capítulo, uma vez que percebemos que o método artístico da escritora Lygia Bojunga e do pintor Marc Chagall se cruzam e essa hipótese é comentada no livro pela personagem Nicolina:
Foi assim que eu me encontrei com o Chagall e rapidinho enturmei com ele. E, lá pelas tantas, eu li a tal frase que copiei no meu caderninho. Até decorei. Porque eu tenho essa mania, sabe copiei: decorei. Ele disse assim: “Sinto-me mais leve, mais livre, diante da tela, e me escondo em minha arte como em um buraco. Entro nesse buraco como em um templo onde eu quisesse oferecer-me em sacrifício.” Fiquei pensando na frase. Depois, gostei. E um dia, quando eu tava pensando no Chagall e no buraco dele, a Coronela me chamou pra conversar e, sem querer, sei lá por que, eu chamei também de buracos esses espacinhos onde ela se enfia pra conversar com você. Sabia? Ela odiou! Aí, eu falei pra ela a frase do Chagall. Então ela odiou menos e eu aproveitei logo pra dizer que ela não pensasse que eu estava, re-mo-ta-men-te, comparando o que o Chagall criava com os pincéis com essas coisas que ela inventa pra te contar, e nem tampouco, com aqueles brinquedos, bonecos, aquilo tudo que eu me sento pra fazer. O que eu estava era chegando à conclusão de que, nesses buracos, a gente se sente tão livre feito ele se pra fazer o que o aqui dentro da gente tá precisando que a gente faça. (BOJUNGA, 2016, p. 91 – 92).
Neste excerto, temos a comparação do estilo fragmentado de Lygia Bojunga, que insere o elemento autobiográfico, isto é, aquela conversa íntima com o leitor iniciada com o “Pra você que me lê”, na narrativa ficccional, bem como o pintor russo também se insere em sua criação artística.
Marc Chagall (1887-1985) nasceu em Vitebsk na Rússia. Ele vinha de uma família judia, e a influência de suas origens perpassam toda a sua obra. Mudou-se para Paris em 1910. Desde a juventude, identificou-se
com a pintura. O pintor mudou-se para Paris, onde viveu de 1910 a 1914. No entanto, mesmo distante de sua terra natal e em contato com outras vanguardas, ele jamais abandonou elementos de sua tradição, como sua obsessão por pintar aldeias, uma alusão evidente a sua infância.
Marc Chagall não hesita em inserir em sua obra artística o elemento autobiográfico, como nas telas Sobre Vitebsk (1914) e Sobre a cidade, h (1924), em que uma ilustra o lugar de origem do pintor e a outra a mulher amada. Tanto é que escreveu sua autobiografia poética intitulada Minha vida (1931), com a qual o pintor busca conciliar os conflitos entre sua infância conturbada e o início da vida adulta na Rússia. Em suma, é nesse aspecto que o diálogo entre o pintor e a escritora se estabelece, no fato de ambos demonstrarem a importância dos aspectos autobiográficos nas suas produções artísticas.
Por fim, é neste capítulo que levantamos argumentos a respeito da relação entre literatura e pintura. De acordo com Gaston Bachelard, na obra O direito de sonhar (1985), no tópico intitulado “Introdução à Bíblia de Chagall”, o filósofo estabelece uma relação entre texto e imagem, a partir das ilustrações da Bíblia, dos livros Gênesis, Êxodo e Cantares de Salomão, realizadas pelo pintor russo. Marc Chagall imprimiu, em suas pinturas, a leitura bíblica que trazia de sua vivência religiosa. Certamente, não apenas sua técnica artística, mas também de suas experiências autobiográficas que influenciaram as ilustrações da Bíblia. Portanto, podemos dizer que ele traduziu em imagens as palavras ali impressas.
A relação da pintura com a literatura é reforçada por Bachelard:
Assim o paraíso possui a dimensão de uma elevação. Seriam necessários poemas e mais poemas para dizer tudo aquilo. Porém um único desenho de Chagall condensa todas essas potências. Uma pintura põe-se a falar infindavelmente. Quem ama a pintura bem sabe que a pintura é uma fonte de palavras, uma fonte de poemas. (BACHELARD, 1985, p. 9).
Tendo partido do enaltecimento das pinturas de Marc Chagall, o filósofo reafirma a possível conversa entre palavras e imagens. Uma conversa que é dupla, pois parte dos textos bíblicos para as pinturas chagallianas, que, por sua vez, não estão estáticas, elas estão a falar “poemas e mais poemas”, como afirma Bachelard. Sendo assim, observamos que ambos, Lygia Bojunga e Marc Chagall, dão abertura para o diálogo entre literatura e pintura, não considerando que estamos diante de artes estanques.
Enfim, o cerne do estilo e do processo de criação literária de Lygia Bojunga está ligado à liberdade imaginativa. Para explicar tal afirmação, vamos retomar alguns pontos importantes. Em primeiro lugar, essa liberdade possibilita que a própria autora escreva a história que deseja contar, sem delimitar um público-alvo preciso, nem limitar-se a faixas etárias, muito embora, o mercado editorial tenha catalogado as obras da escritora como literatura infantil e infanto-juvenil.
Em segundo lugar, a liberdade imaginativa da escritora não a limita, de maneira que esta, quando deseja, insere elementos autobiográficos na ficção. A criação de personas, ao longo de seus textos, e a constante conversa com os personagens através dessa categoria é um exemplo disso, como em: Fazendo Ana Paz (1991), Paisagem (1992) e Intramuros (2016).
Por fim, em terceiro lugar, a intersecção entre linguagens artísticas, como em literatura e pintura, de modo que a escritora viabiliza um espaço para o diálogo e o debate também são fruto dessa liberdade que Lygia Bojunga coloca como condição necessária para a criação literária, para o ato de escrever.
Vanessa Passos (Fortaleza, Ceará, 1993). Doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC), pesquisadora do grupo Espaços de leituras: cânones e bibliotecas, editora na revista Entrelaces do PPGLetras, bailarina e escritora. Teve contos publicados em diversos prêmios literários, como: Prêmio de Literatura UNIFOR, em 2013, e o VIII CLIPP Concurso Literário de Presidente Prudente – Ruth Campos, em 2014. Assina a coluna Pintura das Palavras do blog Leituras da Bel no Jornal O Povo Online.
Bibliografia: